Coisas Ternas

Gostava de só escrever coisas ternas,
Macias como seda ou fêmeas pernas,
Porém só saem de mim versos negros,
Não sei compor andamentos allegros...

Minhas palavras adensam como pedra,
Causadoras duma agonia que medra;
Quão complicado lê-las sem sufocar...
(Abre as janelas para que corra o ar!)

Difícil mergulhá-las sem aleijar,
Essas sílabas (mar de seiva de âmbar!)
Duras, de firmeza tácita, concretas,
Em que esbracejo agruras pouco discretas.

Tanto eu q'ria ser dos sonhos o poeta,
Cantar cantos à vida, simples, directa...
Queria o sol a branquear minha lírica,
Gracejar versos de toada satírica.

Ambicionei a leveza da palavra
que a caneta, suave, no papel lavra.
Porém fui me eu quedar na desilusão,
Afundei na descrença, na decepção.

Não há-de isto mudar, conquanto eu o queira,
E eu quero-o tanto, é ambição verdadeira.
Mas não sei como hei-de, não sou capaz...
Todo eu sou tão triste, tão escuro... Fugaz!

Na ressaca de compor, estranho o que escrevo,
Contudo, concluo que a mim nada devo.
Mas - querem a verdade? - escrevo o que sinto!
Há um certo exagero, mas sei que não minto.

Revólver

Guardo religiosamente comigo
uma mortífera arma de fogo
ao mesmo tempo delicada e grotesca
de uma benignidade maligna
que ao dar-me segurança
é perigo eminente.
Sempre pronta ao disparo.
Guardo-a tal e qual a extensão
de meus próprios dedos.
Sempre pronta a coçar-me
a comichão que tenho de mim
e dos outros.
Trago com ela e como licença
para uso e porte de arma
dois motivos:
fazer mal aos outros
que eventualmente me farão mal a mim;
fazer mal a mim mesmo
prevenindo fazer-me mal.

E sorrio sempre
seguro de estar certo da minha causa
ao ouvir as notícias que nos badalam
fatídica e alegremente
o mal que os outros nos fazem.
Sabemos de cor os perigos que os outros
nos podem infligir.
Mas não nos dizem nunca
quanto mal podemos incutir
nas nossas pessoas
continuando vivos
e a pensar.

Agitatum

Três copos de vinho depois a estômago vazio
e os sentidos revoltam-se inebriados
deixando-me sem saber o que fazer
mas a querer fazer.
Fustigam-me vontades que desconheço
e que não consigo traduzir para a realidade
prática e lógica da mente
a fim de que as conseguisse concretizar,
Para que por fim
ao satisfazer os desejos
de uma criatividade subconsciente
que trago presa a todo e qualquer
estímulo de ordem sensorial,
conseguisse fremir este desconforto
de querer fazer acontecer
mas de não fazer acontecer nada.
Sinto-me despojado do controlo
das capacidades de criar
que são minhas
e produzo ao acaso
falsas tentativas de palavras desconexas
que não transcrevem nunca
aqueloutras imagens florescidas
nos bastidores de um palco que é meu pensar
mas que nunca entram em cena,
sentido-me nunca ir a tempo de talhar no papel
de forma condigna à primogénita sensação corpórea
essa primal excitação inquietante
que me agita a alma
num tempo e espaço
inexistentes.
Por vezes escrevem-se coisas mesmo feias, não é?

Canção: I - Flebodistimia

Que cor tão sem graça
A das minha veias!
Porque lhe' injectaram
Tão tristes ideias?
Cobrem o meu corpo,
Tecem negras teias
- Tão emaranhadas! -
...De desgosto cheias.

Que cor tão garrida
A do sangue alheio!
E minh'alma ferida
Por golpe tão feio.
Sorte tão sofrida
A que a mim veio!
Sonho a minha vida
Encerrada a meio.

Mas não sei se queria
Ser como os demais...
Há gente mais néscia
Que alguns animais.
Ao me q'rer sumir
Dizem-me: "Onde vais?"
"Não faças asneiras
Pensa nos teus pais!"

Epitáfio

O cansaço de quase tudo.
O desgaste físico
das dores de espírito.
A insatisfação de me trazer desperto.
Sonhos quentes em corpo mole.
Inquietações desassossegadas
de quase-tédio.
A roupa no chão do quarto.
Ao acaso.
Pálpebras com um peso de gigantes.
Persianas semicerradas
como as cortinas do meu olhar.

Funérea horizontalidade.
Fúnebre luminosidade.
Ar pesado... gasto.

Um fechar os olhos
e adormecer.