Se Te Queres Matar

«Se te queres matar, por que não te queres matar?
Ah, aproveita! que eu, que tanto amo a morte e a vida,
Se ousasse matar-me, também me mataria...
Ah, se ousares, ousa!
De que te serve o quadro sucessivo das imagens externas
A que chamamos o mundo?
A cinematografia das horas representadas
Por actores de convenções e poses determinadas,
O circo policromo do nosso dinamismo sem fim?
De que te serve o teu mundo interior que desconheces?
Talvez, matando-te, o conheças finalmente...
Talvez, acabando, comeces...
E, de qualquer forma, se te cansa seres,
Ah, cansa-te nobremente,
E não cantes, como eu, a vida por bebedeira,
Não saúdes como eu a morte em literatura!

Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente!
Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém...
Sem ti correrá tudo sem ti.
Talvez seja pior para outros existires que matares-te...
Talvez peses mais durando, que deixando de durar...

A mágoa dos outros?... Tens remorso adiantado
De que te chorem?
Descansa: pouco te chorarão...
O impulso vital apaga as lágrimas pouco a pouco,
Quando não são de coisas nossas,
Quando são do que acontece aos outros, sobretudo a morte,
Porque é coisa depois da qual nada acontece aos outros...

Primeiro é a angústia, a surpresa da vinda
Do mistério e da falta da tua vida falada...
Depois o horror do caixão visível e material,
E os homens de preto que exercem a profissão de estar ali.
Depois a família a velar, inconsolável e contando anedotas,
Lamentando a pena de teres morrido,
E tu mera causa ocasional daquela carpidação,
Tu verdadeiramente morto, muito mais morto que calculas...
Muito mais morto aqui que calculas,
Mesmo que estejas muito mais vivo além...
Depois a trágica retirada para o jazigo ou a cova,
E depois o princípio da morte da tua memória.
Há primeiro em todos um alívio
Da tragédia um pouco maçadora de teres morrido...
Depois a conversa aligeira-se quotidianamente,
E a vida de todos os dias retoma o seu dia...

Depois, lentamente esqueceste.
Só és lembrado em duas datas, aniversariamente:
Quando faz anos que nasceste, quando faz anos que morreste.
Mais nada, mais nada, absolutamente mais nada.
Duas vezes no ano pensam em ti.
Duas vezes no ano suspiram por ti os que te amaram,
E uma ou outra vez suspiram se por acaso se fala em ti.

Encara-te a frio, e encara a frio o que somos...
Se queres matar-te, mata-te...
Não tenhas escrúpulos morais, receios de inteligência! ...
Que escrúpulos ou receios tem a mecânica da vida?

Que escrúpulos químicos tem o impulso que gera
As seivas, e a circulação do sangue, e o amor?

Que memória dos outros tem o ritmo alegre da vida?
Ah, pobre vaidade de carne e osso chamada homem.
Não vês que não tens importância absolutamente nenhuma?

És importante para ti, porque é a ti que te sentes.
És tudo para ti, porque para ti és o universo,
E o próprio universo e os outros
Satélites da tua subjectividade objectiva.
És importante para ti porque só tu és importante para ti.
E se és assim, ó mito, não serão os outros assim?

Tens, como Hamlet, o pavor do desconhecido?
Mas o que é conhecido? O que é que tu conheces,
Para que chames desconhecido a qualquer coisa em especial?

Tens, como Falstaff, o amor gorduroso da vida?
Se assim a amas materialmente, ama-a ainda mais materialmente,
Torna-te parte carnal da terra e das coisas!
Dispersa-te, sistema físico-químico
De células nocturnamente conscientes
Pela nocturna consciência da inconsciência dos corpos,
Pelo grande cobertor não-cobrindo-nada das aparências,
Pela relva e a erva da proliferação dos seres,
Pela névoa atómica das coisas,
Pelas paredes turbilhonantes
Do vácuo dinâmico do mundo...»

Álvaro de Campos, in "Poemas"
Recordações da Casa Amarela (1989), de João César Monteiro


"Aqui estamos mais uma vez sozinhos. Tudo isto é tão lento, tão pesado, tão triste... Dentro de pouco tempo estarei velho. Tudo então se acabará. Tanta gente que passou aqui por este quarto. Disseram coisas. Não me disseram grande coisa. Foram-se embora. Envelheceram, tornaram-se lentos e miseráveis, cada qual no seu recanto da terra."

"Well never mind, we are ugly but we have the music."

Chelsea Hotel # 2

 «I remember you well in the Chelsea Hotel,
you were talking so brave and so sweet,
giving me head on the unmade bed,
while the limousines wait in the street.
Those were the reasons and that was New York,
we were running for the money and the flesh.
And that was called love for the workers in song
probably still is for those of them left.

Ah but you got away, didn't you babe,
you just turned your back on the crowd,
you got away, I never once heard you say,
I need you, I don't need you,
I need you, I don't need you
and all of that jiving around.

I remember you well in the Chelsea Hotel
you were famous, your heart was a legend.
You told me again you preferred handsome men
but for me you would make an exception.
And clenching your fist for the ones like us
who are oppressed by the figures of beauty,
you fixed yourself, you said, "Well never mind,
we are ugly but we have the music."

And then you got away, didn't you babe...
I don't mean to suggest that I loved you the best,
I can't keep track of each fallen robin.
I remember you well in the Chelsea Hotel,
that's all, I don't even think of you that often.»

 Leonard Cohen
 

Olissipo

Sabe ao Tejo e sabe ao sal
e sabe à excessiva alma
de que é feito Portugal.
Tem gosto a eternidade,
ao que é velho e ao que é novo
e ao deslumbre e a saudade.

Cheiram a luz e a brilhos
suas colinas que o sol doira,
Raiada de becos, trilhos,
escadinhas, largos, travessas...
Há em si tanto mistério,
traz nela tantas promessas.

Esta urbe miscigenada,
que é só igual a si própria
e de todo o mundo arraçada,
Tem a volúpia da mulata,
a invulgaridade mourisca,
e a finura duma alva nata.

Respira-se o Fado nas tabernas
Com essa brandura e a tristeza
de que são feitas as coisas ternas.
Duas pontes, que são suas pernas,
atravessam, compridas, o rio
em dobrado abraço... Tão fraternas!

Cidade de minhas fantasias,
aqui me encontro e me perco nela
e nas suas idiossincrasias...
E o colorido do casario,
alegre adorno de sua face,
tinge as telas de quem pinta o rio.

Que outra cidade, senão a Branca?
Esta Olissipo que me agarrou
e me pôs no coração uma tranca...
E o romance que no seu céu voa
carrega o ar de dez mil odores:
E cheira bem, que cheira a Lisboa.

Prazeres Preguiçócios

Aquilo que mais gosto de fazer
É o acto de não se fazer nada
Deitar me na cama e não me mexer
Deixar vagaroso o tempo a correr
Ouvir música ao de leve tocada
Que ao ecoar, faz ouvidos doer...
Rejubilo em ter a mente apagada
Delicio-me em não pensar em nada
Em ter caminhos para percorrer
Ainda assim não me fazer à estrada.

Ai, doce marasmo que me acalenta a alma...
Um dia destes 'inda faleço de calma!

Dezputismo

Eram dez putas
a disputar
o déspota
entre si.

Despiram-se,
desesperadas,
a esperar
um sim.

Dispararam
disparates
ao acaso
sem fim.

Ele mirou-as
e eliminou-as
uma a uma
logo assim.

Dispuseram-lhe
dez pentelhos,
duas pernas
e um rim.

Ele esperou
depois expirou
e espirrou:
"Atchim!"

(Estava farto
de fartura,
ou enfartou
cá p'ra mim.)

Desgastadas,
as dez gatas
desengataram.
"Que ruim!"

Desfaleceram
dos fellatios
e das falácias
por fim.

E uma delas
com mazelas
amarelas
disse: "Enfim!"

Foram embora
sem demora
e ele ficou
num festim.

E foi assim.

Vitória, vitória!
Acabou a história
de que não há memória.
Fim.
Divino.

Versos Íntimos

«Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão – esta pantera –
Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!»

Augusto dos Anjos, in Eu (1912)

Lógica

«Ai d'aquelles que, um dia, depozeram
Firmes crenças n'um bem que lhes voou!
Ai dos que n'este mundo ainda esperam!
Terão a sorte de quem já esperou...

Ai dos pobrinhos, dos que já tiveram
Oiro e papeis que o vento lhes levou!
Ai dos que tem, que ainda não perderam,
Que amanhã, serão pobres como eu sou.

Ai dos que, hoje, amam e não são amados,
Que, algum dia, o serão, mas sem poder!
Ai dos que soffrem! ai dos desgraçados

Que, breve, não terão mais p'ra soffrer!
Ai dos que morrem, que lá vão levados!
Ai de nós que ainda temos de viver!»

António Nobre, in
Despedidas, 1895-1899

Veredas

...O trambolho que é sermos,
que é fazer subsistir esta vida!...
Percorremos nosso caminho
sempre aos círculos, às voltas,
sem achar um princípio ou um fim
(Como é próprio do andar à roda).
Vagueamos ébrios, zonzos,
tentando enveredar no caminho
que nos aconselham seguir.
E nós lá vamos, como ovelhas
num rebanho, às apalpadelas,
a tactear o escuro do desconhecido,
Indo contra as paredes,
a tabelar de uma para outra
qual bola de ping pong...
Zombies esbarrando nos
mamarrachos da nossa existência.
Tentamos seguir o caminho
que vemos os outros percorrer,
já que chegámos a este mundo
sem saber o destino da viagem,
onde ter que ir.
Chegámos sem nenhuma morada,
sem nenhum destino ou meta final.
Temos nós que inventar
uma morada, uma direcção
(Ou ver para onde os outros se vão dirigindo,
e ir atrás. Também dá!)
Por vezes lá damos com o palacete
que designámos como nossa morada,
como nosso objectivo a cumprir.
Entramos a medo, quase sempre.
Mas deslumbrados.
Com o palacete.
Connosco mesmos
por termos sabido acertar com a direccção.
Mas logo nos apercebemos
que não vale a pena ter medo.
Nem nos deslumbrarmos.
Lá não mora ninguém. Nunca mora.
(E se não há Homens, não há que recear!
Nem há a quem exibir nosso triunfo...)
Vasculhamos todas as divisões.
Mas nada!
Hipotecámos tanto do nosso tempo
em busca desta morada,
em busca do prémio final
que nos daria direito
a viver quietos e sossegados
como grandes barões triunfantes.
Mas não!
Esta casa não tem recheio,
é apenas um esqueleto de paredes
que alberga no seu interior
a única coisa que a vida nos pode dar:
o vazio da existência!
Viramos a casa do avesso
em busca de algo
que nos possa justificar
tão penosa e demorada viagem!
Tudo oco, tudo vazio...
Pó, só resta o pó
que é a evidência do tempo
que perdemos em busca de tal direcção.
Pó e os retratos antigos
de nossa infância, claro.
Cobertos, obviamente,
desse mesmo pó do tempo.
Esquecemo-nos da razão
que nos fez entrar.
Não sabemos bem a razão, até,
do porquê de termos procurado
tal morada.
Vendo bem as coisas, a razão foi
não ter tido mais nenhuma outra razão...
Foi o facto de quem inventou este jogo
não nos ter explicado
as regras e o seu objectivo
quando estávamos ainda na casa de partida
e os dados não haviam sido lançados.
É! Um jogo de sorte e azar!
É o que isto acaba por ser.
Somos peões de tabuleiro.
E os deuses a brincar connosco!
Lançam os dados e fazem-nos andar
aos avanços e recuos.
(E este vai-e-vem descabido
por vezes faz nos enjoar,
há que mandar parar o carrossel
para apanhar ar.
E espertos que somos,
e fartos que estamos,
por vezes temos a ousadia
de fugir, sem deixar rastro,
deixando os deuses loucos à nossa procura.
E a mim isto sempre me pareceu o mais sensato!)
Vivemos como calha e nem damos conta.
É a vida que nos vive a nós,
Não somos nós que a vivemos.

Moldagem

Tanto medo a gente tem
de se expor tal como é...
Escondemos da nossa mãe
aquele "eu" de cabaré
que não se mostra a ninguém.

Ocultamos dos amigos
nossos desejos mais sórdidos.
Conservamos em jazigos
quaisquer devaneios mórbidos
que os outros achem perigos.

E reprimem-se as ideias
como quem encolhe um peido
co'a força de panaceias.
É melhor ficar retido
com receio às diarreias.

Não podemos destoar,
há que seguir no carreiro.
Ninguém p'ra desafiar
nem que queira ser inteiro,
nem erguer ondas no mar.

Neste mar de ovelhas mansas
que é o mundo actual.
Não se ousa bailar danças
que provoquem a moral
ou possam chocar crianças.

Nascemos de um só molde
que tem um formato ímpar.
Mas vem logo quem nos tolde
de plástico d'embalar
e nos force a contra-molde.

E se ousas provocar
os dogmas instituídos,
ou se tentas afrontar,
berrar, ou fazer ruídos,
vêm mandar-te calar.

E tu calas e consentes,
ficas quieto lá na toca;
Partem quantos são os dentes
que tens em tua boca
se te armas aos valentes.

Saudosismo

A saudade...
Ai a saudade!

A saudade
é o denominador comum
das nossas vidas.

Divide, repetidamente,
nossas memórias boas
e más...
Esbate-as e transforma-as,
tornado-lhes os contornos difusos
até não se distinguir já o certo
do não certo.

Tende a fazer-nos esquecer
o mau
e a amplificar o bom.
E eu não sei porque razão!,
Se é o mau, ou menos bom,
que em nossas vidas predomina,
sobretudo.

Essa saudade,
que reduz recordações
a pontadas no peito
asfixiantes,
a esvoaçar
por sobre a neblina
da memória que ficou
do nosso
passado,

Traz-nos
o tal misto de tristeza
e alegria
a que damos o nome de
nostalgia.

Tristeza
por os momentos
haverem já passado
e não termos dado conta.
Alegria
porque os vivemos
e temos memória disso.

...Saudade! saudade!
Que nos deixas em delay,
a viver
instantes adiados.
Só gozamos o presente
nas recordações futuras.

Esse presente,
que é sempre
tão melhor
quando é
passado...
Quando é visto
à distância
de uma vida e meia.

Porquê,
pergunto-me?

O que se sabe é que,
quando a saudade se instala,
ficamos divididos,
subtraídos,

e damos sempre
resto
zero.

Fim

«Alma, enfim descansa
Na desesperança.

Alma, esquece e passa:
Dorme, enfim segura
Dessa última graça
Que é toda a ventura.

E à Saudade em flor
Que o teu sonho lindo
Perfumou de amor,
Diz-lhe adeus, sorrindo…

Que Ela há-de escutar-te,
Pálida, a entender-te!
E, no espanto enorme,
Sonhando envolver-te,
Triste, há-de embalar-te
– «Dorme… dorme… dorme…» –
Como a adormecer-te.»

Guilherme de Faria, in Saudade Minha [1929]

"13 Angels Standing Guard 'Round The Side Of Your Bed"

Além-tédio

"Nada me expira já, nada me vive ---
Nem a tristeza nem as horas belas.
De as não ter e de nunca vir a tê-las,
Fartam-me até as coisas que não tive.

Como eu quisera, enfim de alma esquecida,
Dormir em paz num leito de hospital...
Cansei dentro de mim, cansei a vida
De tanto a divagar em luz irreal.

Outrora imaginei escalar os céus
À força de ambição e nostalgia,
E doente-de-Novo, fui-me Deus
No grande rastro fulvo que me ardia.

Parti. Mas logo regressei à dor,
Pois tudo me ruiu... Tudo era igual:
A quimera, cingida, era real,
A própria maravilha tinha cor!

Ecoando-me em silêncio, a noite escura
Baixou-me assim na queda sem remédio;
Eu próprio me traguei na profundura,
Me sequei todo, endureci de tédio.

E só me resta hoje uma alegria:
É que, de tão iguais e tão vazios,
Os instantes me esvoam dia a dia
Cada vez mais velozes, mais esguios..."


Mário de Sá-Carneiro



Salto no abismo.

Central do Brasil (1998), Walter Salles

Quanta sensibilidade...

Alho-Porro

Acendo. Inalo. Expulso.
Repito.
Continuo envolto no mesmo meio físico
em que momentos antes me encontrava.
Parece-me, pelo menos...
Mas no entanto...
De repente...
As cores saltam bravias
da realidade
E entram-me, exageradamente vivas,
pela retina.
Brilhos, luzes, ondas electromagnéticas
das mais diferentes frequências
cintilam por todo o lado
como se estivesse dentro
de uma bola de espelhos.
As imagens rodam num frenezim disparatado
mesmo em frente dos meus olhos!
Mas ao invés de me sentir tonto,
sinto-me bem como em sonhos cor-de-rosa.
Sons agudos e amplificados
são disparados, também eles,
em todo o meu redor,
saltando de todos os lados,
atropelando-se uns aos outros
sem que eu tenha tempo de processar sequer
a cacofonia do ruído anterior,
perfurando-me os tímpanos
com estridentes sensações
que eu não conheço.
A relva em que me encontro deitado
parece agora mais viva,
mais macia,
mais real.
A saliva evaporou-se da minha boca
e deixou-me a balbuciar bocejos
por entre os lábios inertes.
Sinto o corpo numa moleza estúpida
mas tenho explosões
a acontecerem dentro de mim.
O vento sopra e congela o tempo.
Toda esta barafunda de sensações,
estas sinestesias hiperbolizadas,
parecem demorar horas.
No entanto são segundos,
que explodem com toda a violência
nos meus sentidos,
fazendo-me perder a percepção
do tempo.

Carne Mal-Dita

Não sei se será só minha impressão,
mas este mundo virou um deboche!
Já nem preciso largar um tostão
para eu, guloso!, gozar de um broche.

E eu trago as bolas dos olhos pasmadas
com a luxúria do dobrar do século!
Mulheres não querem já ser amadas,
querem apenas do homem seu espéculo!

E eles dizem, sem pudor, «Pões-me um aço!»
E elas dão o sorriso mas não só.
Apalpam-se e riem com ar devasso,
e vão se devorando sem ter dó!

Peço mil desculpas, o meu perdão!
Garanto-vos não ser minha intenção
chocar ninguém com má educação...
Apenas faço uma breve questão:

Para onde se escapou a decência
(Estou pasmado, nunca vi nada igual!)
Para o mundo entrar nesta decadência
dos tão puros valores e da moral?

Não é qu'eu, honestamente, me importe!
Por mim continuem, já que aqui eu
nunca tive em engates muita sorte,
e sempre estimei muito o prazer meu.

Vida Em Claro

Chego do emprego tarde a casa,
Venho cansado que nem um cão,
Sinto uma moleza que me arrasa,
Estendo-me ao comprido no colchão.

Porém o sono tarda em pegar,
Coisa que vem sendo recorrente,
Antevejo a insónia a chegar
E trago o cérebro tão dormente!

Dou voltas e revoltas na cama,
Nada há que me faça dormir.
Levanto-me do leito (Que drama!)
E vou à varanda distrair.

Queimo cigarro atrás de cigarro
Inspirando, raivoso, a fumaça.
Horas passam num vagar bizarro
Durante outra noitada sem graça.

O relógio dá a meia-noite,
Ouve-se ressoar o badalo,
Gasta-se a noite, renasce o dia
Ouve-se ao longe o cantar dum galo.

É já dia, já veio a manhã!
Finalmente venceu-me o cansaço...
Chega o sono em pézinhos de lã,
Do tabaco já só sobra o maço.

Deixo-me cair entre os lençóis,
Absorvo o fresco que a cama tinha,
Mas toca logo o despertador,
Essa tão estridente campainha!

Nem deu tempo de fechar os olhos
Este meu tão breve dormitar,
Nem deu p'ra saber da cama os folhos,
Ando há dias sem descansar...

Chegou o tempo de levantar
Ainda eu não pude dormir nada,
Urge a pressa p'ra ir trabalhar...
Que vida esta! Mas que massada!

Vou andando em piloto automático
A caminho dum reles trabalho,
Sinto o corpo num queixar somático
Relembrando-me que eu nada valho...

Começo o execrável ofício
Que me vai dando para comer,
E permite sustentar o vício
de ver os cigarros a arder.

Mas é este um labutar sem gozo,
e quando é sem gosto, muito cansa.
Passo o tempo num sofrer penoso
E em mim só o desespero avança!

Como tudo isto é detestável,
Ter que trabalhar para viver!
Esta vida é tão abominável...
Só queria poder desnascer!

Ao menos que m'ajudasse o sono,
E que eu pudesse, enfim, descansar...
O dormir largou-me ao abandono
Deixou-me, azoado, a definhar!

Escape

«the best part was
pulling down the
shades
stuffing the doorbell
with rags
putting the phone
in the
refrigerator
and going to bed
for 3 or 4
days.

and the next best
part
was
nobody ever
missed
me.»

Charles Bukowski, in You Get So Alone at Times That it Just Makes Sense

No Help For That

«There is a place in the heart that
will never be filled
a space

and even during the
best moments
and
the greatest
times

we will know it

we will know it
more than
ever

there is a place in the heart that
will never be filled

and
we will wait
and
wait

in that
space.»
 

Charles Bukowski, in You Get So Alone at Times That it Just Makes Sense
Demasiado bonito.



Seul Contre Tous (1998), Gaspar Noé


"On naît seul, on vit seul, on meurt seul. Seul, toujours seul. Et même quand on baise on est seul. Seul avec sa chair, seul avec sa vie, qui est comme un tunnel qu'il est impossible de partager. Et plus on est vieux, plus on est seul, face à quelques souvenirs d'une vie qui se détruit au fur et à mesure. Une vie, c'est comme un tunnel. Et à chacun son petit tunnel. Mais au bout du tunnel, il n'y a même pas de lumière. Il n'y a plus rien. Même la mémoire se décompose avant la fin. Les vieux le savent bien."

The Bridge (2006), Eric Steel

 

People suffer largely unnoticed while the rest of the world goes about its business.

Moonrise Kingdom (2012), Wes Anderson

 

"I hope the roof flies off, and I get sucked up into space."

Esquiva

Sei! Esses teus olhos esquivos...
Essa tua língua lassa...
Não podiam mais 'star vivos
Nem suportar tal desgraça!

Escorreste por tantas mãos,
Qual enguia já cansada,
Só tiveste afectos vãos,
Não soubeste ser amada.

Puta e reles te chamaram,
E os ouvidos tu tapaste.
Sei que todos te usaram...
Que mil mágoas não choraste!

Lamentos à tua sorte
Partilhaste c'os demais,
Mas mandaram-te à morte
Por pecados capitais.

Deram-te um tal desprezo,
Obrigaram-te a morrer!
Saiu todo o mundo ileso
Da culpa de em ti não crer.

Como foste tu cair
Neste enorme e vil engodo?
Nunca te vi eu sorrir...
...Rastejaste em tanto lodo!

Decidiste vir t'embora
Deste lugar ultrajante,
Largast'em tão boa hora
Esta vida amargurante.

Opção, julgo, a mais sensata
(Não creio estar enganado!),
Esta gente que se mata
Ganha a paz do outro lado.

Bela Entorpecida

Eu podia dormir
para sempre,

E só acordar
de vez em quando,

Para assim ter
o prazer
da consciência

de estar dormindo.

Rodendros

A paixão rói-me por dentro,
Corrompe-me a seriedade.
Dou por mim obsessivo,
Um tanto compulsivo,
Embeiçado em tal simplicidade
Que perco a noção da realidade.

Mas calo-me.
Calo-me e não me revelo.
Guardo todos esses segredos para mim,
Esperando, estupidamente, o outro alguém.
Aguardando que esse alguém tome a iniciativa
Que eu nunca sou capaz de tomar.
E não é por falta de sentimento que não o faço,
Isso é certo!

E então pergunto:
Porquê as amarras que me prendem?
Porquê as mordaças que me calam?
Tudo isto que não é mais que uma timidez absurda
Que me torna o mais inerte dos inertes,
Condenando-me ao aprisionamento solitário
Dos meus mais inatos sentimentos.
Com os quais hei-de morrer, por não mais saber viver...

Arrhhh! Porra!

Mas porquê tanta força de sentimentos
Se ainda mais forte é a inércia que me cala a voz?

Fim-de-Tarde

Fumo a vida na ponta de um cigarro,
sorvendo delicadamente a nicotina
que me embala os sentidos.
Não espero nada.
No Príncipe Real reina a tranquilidade costumeira:
Os pássaros voam por sobre a minha cabeça,
passando rentes aos meus pensamentos
que se elevam altos no ar.
Jogam-se baralhos de cartas reformados
enquanto se discute a sueca da crise actual.
Os pombos debicam as migalhas
que algum sénior despojou pelo chão
como que a queimar os últimos cartuchos que lhe restam.
Crianças baloiçam alegres na ingenuidade da infância
entremeadas entre risos e picardias típicas da idade.
Há cães a passear donos descontraídos
que vão enganando assim o stress do lufa-lufa diário.
Estrangeiros pálidos e psicadélicos
bronzeiam a pele ao sol português,
enquanto sentem, deitados, a realidade fresca da relva.
Há outros que, alheados de tudo isto,
mergulham nas histórias de romances de capa mole,
submersos em enredos de heróis triunfantes
como certamente eu nunca serei.
Também há quem amortalhe múmias de ervas secas
com as pontas delicadas dos dedos,
deslizando depois a língua pelo limite do papel
como quem lambe os lábios doces de açúcar,
e selando, por fim, a cumplicidade amigável de um charro.
Acendem pavios que são paivas
e vem-lhes a paz que lhes inebria as sensações.
Confesso que lhes sinto alguma inveja
e que desejo ser o próximo do "gira a chucha".
Quero isto com o propósito do alheamento de tudo,
ou apenas de trocar dois dedos de conversa amigáveis
entre risos estridentes e companheiros.
Enquanto isto, a brisa sopra leve, levantando folhas
e envolvendo de mística todo este passar tempo dos outros...
E eu aqui. Sentado passivamente,
a ver tranquilamente tudo isto de fora
como quem vê peixes na montra de um aquário.
Comigo só uma caneta e um caderno
com os quais finjo brincar aos poetas.
O tempo vai passando moroso.
Já não penso nada e já espero tudo.
E gosto disto. E sinto-me calmo. E sabe bem.
Pudera que todos os dias fossem assim!

Harmonias Oníricas

Há certas músicas que têm
o condão de me arrancar
do peito o coração onírico
e de o fazer esvoaçar pelo ar,
dependurado nas semínimas
e colcheias dessas tais melodias,
de o fazer subir como um balão de ar quente
a dançar por entre nuvens etéreas,
feitas do algodão mais fino e macio,
feitas do algodão mais doce.
E nessas nuvens, que se constituem
como as almofadas dos meus sonhos
onde recosto a cabeça,
fantasio risos em verdes prados...
E eu pasmo-me assim,
e fico a ver o tempo fluir lento,
comigo embriagado nas notas da ilusão
que me sustêm a respiração
por tempos longos e indefinidos...
Fico a olhar para as paredes brancas,
telas onde projecto saudosas imagens
das boas memórias de outros tempos,
e tusso lamentos da minha vida presente,
solto "ais!" de estar entre quatro paredes.
Vem-me a ânsia de correr descalço
por entre a relva e o pó da terra,
de me submergir todo nos ledos ribeiros
que só me afogam os joelhos.
E, de facto, na minha mente fértil
faço tudo isso acontecer,
e sou contente.
Percebo-me cheio, completo
de algo que não conheço.
Algo medra dentro de mim e quer sair,
quer rebentar as costuras da pele
e esguichar-se por entre os poros.
Mas contenho-me sempre,
porque só me sei conter.
Nos entretantos de tudo isto,
percebo nos ouvidos um ritardando.
A música cala-se.
Sinto o choque da realidade
que me atropela e faz mossa.
Carrego repeat.



«Sei que choras
muitas vezes
sozinha

e que lavas
o rosto

(Ah, Onde
ando eu)

para a tua dor
não ser minha.»

António Reis - Novos Poemas Quotidianos
Quel temps !
Le vent souffle comme un phoque.
Le yacht danse.
Il a l'air d'un petit fou.
La mer est démontée.
Pourvu qu'elle ne se brise pas sur un rocher.
Personne ne peut la remonter.
"Je ne veux pas rester ici," dit la jolie passagère.
"Ce n'est pas un endroit amusant.
J'aime mieux autre chose.
Allez me chercher une voiture."


A minha música favorita de um dos meus compositores favoritos (e sim, também gosto muito das Gnossiennes e das Gymnopédies!)... Acho que nunca repeti sem parar tantas vezes uma música como esta!

They all look dead... Realistic, but cold and dead.

Descobri por acaso o trabalho deste pintor hiperrealista norueguês, de seu nome Henrik Aarrestad Uldalen, que tem um trabalho fantástico. Pinta em óleo sobre tela imagens que se assemelham a autênticas fotografias, mas que permitem brincar com a imagem e o absurdo como só a pintura permite. E, como não poderia deixar de ser, o seu trabalho transporta-nos para atmosferas etéreas, muito frias, carregadas de melancolia, por vezes a rasar a quietude da morte...

"They all look dead... Realistic, but cold and dead."

Se alguém tiver gostado e tiver curiosidade em ver mais trabalhos do autor, convido a visitar a sua página: http://henrikaau.com/. Vale a pena!
Fatídica, como a vida...



O Eterno Retorno (Sempre Mais Do Mesmo...)

"E se um dia ou uma noite um demónio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: "esta vida, assim como tua a vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes; e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indivisivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e sequência- e do mesmo modo essa aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez - e tu com ela, poeirinha da poeira!" Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demónio que te falasse assim? Ou viveste alguma vez um instante descomunal, em que lhe responderias: "Tu és um deus e nunca ouvi nada mais divino!" Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti, assim como tu és, ele te transformaria e talvez te triturasse; a pergunta, diante de tudo e de cada coisa: "Quero isto ainda uma vez e ainda inúmeras vezes?" pesaria como o mais pesado dos pesos sobre o teu agir! Ou, então, como terias de ficar de bem contigo e mesmo com a vida, para não desejar nada mais do que essa última, eterna confirmação e chancela?"
 
Friedrich Nietzsche, in A Gaia Ciência

Sonhos Náufragos

Dizem que são os sonhos
Quem nos comanda a vida.
Pois então eu estou morto,
Porque em mim o sonho morreu!

Não há motivação ou ambição,
Apenas tristezas e cansaços.
E até a esperança vai acabando
A cada minha nova golfada de ar!

O meu íntimo grita socorro
Mas os ouvidos alheios tapam-se...
Nunca há quem o queira escutar,
Ninguém para se preocupar!

Sou uma nau à deriva, um náufrago
sem ilha ou um porto de abrigo!
Respiro, mas caminho sem direcção,
Não tenho nem utilidade nem alegria...

A racionalidade esmaga-me os desejos
Que tentam, bravios como ervas daninhas,
Furar o alcatrão duro da razão.
E eu, impotente, não acho uma saída...

Este mal, que em mim fez crescer
Raízes entrançadas na minha alma
E fechou as suas garras de rapina
Para não mais me largar, deixar cair...

Esta negrura amarga e apática,
A que talvez possam chamar depressão,
Apoderou-se de mim como cancro,
Metastizou em minha alma e coração!

É-me urgente ressuscitar os sonhos,
Fazê-los emergir dos densos mares,
Dos oceanos escuros, frios e fundos
Onde mergulharam sem saber nadar.

Vontades ou Ócios?

É raro ter força de vontade
No cumprimento de minhas metas,
Nunca tive a pró-actividade
Nem a austeridade dos ascetas.

Mas que bom é, que bem sabe
Fazer o jeito aos caprichos,
Ob'decer cego à vontade,
No néscio jeito de bichos!

Ter que levantar da cama
Sem vontade de fazer nada
E o ocioso leito chama:
"Fica um pouco mais deitada!"

Ai! o prazer que o corpo sofre
Ao deixar estar entre os lençóis...
Deixa estar o dever no cofre
Eu cá estou entre cem mil sóis!

Bom que é subverter a razão,
Esquecê-la completamente,
Dar primazia à sensação,
Ao prazer que a carne sente!

...

Mas deixemo-nos de brincadeiras...
O que é afinal ter força de vontade
Se as minhas vontades têm tanta força
Que raramente as consigo domar com a razão?

Companhia de Mim Próprio

Quero estar sozinho!
Por favor, deixem-me estar sozinho...
Mais sozinho do que o que já sou!

Deixem o isolamento comer-me vivo,
Encolhido com os meus desalentos,
Retirado da mundana hipocrisia!

Não consigo suportar mais a convivência,
Nem posso permitir-me ter mais conivência,
Com aqueles que me querem por conveniência.

Não! Não é isto que realmente anseio!
Sou mentiroso e não sei bem o que quero,
Não consigo expor em frases o que sinto...

Palavras não há que sejam certas,
Todas as sílabas jamais balbuciadas
Pecam na descrição dos reais sentimentos.

Sei que quero ser eu, com a tristeza dos poetas,
Mas sem a dor angustiante do ser-se triste.
Mas será possível esta utópica conciliação?

Ai as dicotomias da minha vida!
O desejar algo que se não quer
E o querer algo que não se deseja!

Gostava de me sentir alegre e satisfeito
Mas sinto nojo do histerismo eufórico,
Da fútil alegria por demais evidente...

Nos dias em que me consigo extrovertir,
Estranho-me a mim mesmo, acho-me falso.
Sinto dessa alegria apenas uma vil repulsa...

Eu quero ser alegre sem mostrar sê-lo,
Desejo a melancolia sem a mágoa do pesar,
Quero numa alegria triste poder durar!

O que realmente quero, percebo-o agora,
É que a melancolia me preencha o vazio
E possa dar sentido à minha existência,

Mas percebo também que é algo irreconciliável,
Que a tristeza não preenche, só nos dilacera.
E isso, infelizmente, só me pode deixar triste!

Deixei De Ser O Que Nunca Fui

Devo ter começado a morrer numa qualquer tarde de melancolia estival,
Da qual me lembro agora por já a haver esquecido nos meandros da memória...
Quando foi que deixei de ser Eu para me tornar nisto que sou?
Nesta coisa amorfa e sem ânimo, nesta viscosidade apática?
Não me consigo lembrar de quando tudo começou a acabar...
Sei que agora vai acabando, lentamente, sumindo-se como areia por entre os dedos!
É tão estranha esta sensação de me olhar ao espelho e não mais me reconhecer,
De haver perdido a identificação com a criança alegre que sempre se reflectiu do outro lado,
Dos sorrisos inocentes e com a vida pela frente que a vidraça prateada, em reflexo, me devolvia!
Lembro-me agora... Acho que já nessa altura tudo havia principiado, apenas eu não dera conta!
Já nessa altura eu tinha deixado de ser aquilo que nunca fui, tinha já começado o desmoronamento,
Já nesses tempos eu tinha deixado de ser o que os outros me quiseram fazer e sempre acharam que eu era,
E que, por isso mesmo, a mim próprio fizeram acreditar que eu era isso, que afinal nunca fui!
Qual a razão, então, de me estranhar agora por não ser mais algo que, afinal de contas, nunca cheguei verdadeiramente a ser?
Não deveria ficar contente por estar mais próximo de vir a conhecer aquilo que sou,
Agora que me apercebi que afinal não sou aquilo que pensava ser, despistando esse engano?
Ai, as contradições da vida, os mil enganos que nos enleiam a propriocepção...
Nunca chegamos bem a saber aquilo que realmente somos, a conhecer a pessoa dentro de nós,
Apenas podemos olhar para trás e ver o que fomos, ou melhor, ver aquilo que não fomos capazes de ser!
Eu viro a cabeça e vejo que fui Muito, sem nunca ter sido capaz de ser Tudo
Isto é, de ser tudo aquilo a que estava destinado e que os outros em mim imaginaram...
Revelei-me um Nada a conduzir-se para a aniquilação total, um fracasso absoluto e ingrato!
Ah, mas ainda assim sou dono de muitas virtudes, não pensem que me degradei a tal ponto...
Sou senhor da minha inteligência e de pertinente observação, apenas nem sempre sei o que com elas fazer...
Talvez a minha elevação de espírito (que, quando novo, fez os outros projectarem em mim grandes feitos)
Talvez esses cumes de Himalaias da alma e da compreensão me tenham propiciado mirar do alto o vazio do mundo,
Essa falta de sentido do existir que é tão óbvia, embora passe tão completamente despercebida à maioria dos transeuntes,
Mas que eu vejo tão claramente, como vejo o meu reflexo ao espelho, e me faz assim desprezá-lo.
Desprezá-lo a ele, ao mundo, e à vida que contém...
"Sou o mais miserável dos homens. Se o que sinto fosse distribuído por igual entre os seres humanos, não haveria face alegre na Terra. Não sei se algum dia vou me sentir melhor, mas continuar assim é impossível. Se nada mudar, prefiro morrer."
 
Abraham Lincoln

Sutura

No silêncio escuro da noite
Ilumina-me esta breve consciência:
Os outros desistiram de mim,
Eu há muito desisti dos outros!
A solidão em que agora me percebo
É o reflexo do cego isolamento
Que sempre procurei dos outros...
Misantropo, eis o que me tornei!

Sinto pena de mim próprio e do meu
(Pelos outros outrora profetizado)
Futuro dourado e caminho alado,
Que é agora ingratamente desperdiçado,
Comprometido por um rasgo de alma
Que me fez ver a crueza nua da vida:
Do tudo que há, só o Nada existe!
O resto não passa dum efémero triste...

Sem suplicar a ninguém, principiamos,
Não é preciso tardar muito, findamos.
O entretanto é um existir sem nexo,
Sem razão real de ser. E o amor?
Talvez possa ser a suma resposta:
Eu cá isso não sei, nem nunca soube...
E é isto o que mais medo me dá, (...e dói!),
Temer nunca o viver para o vir a saber...

Os outros rodeiam-me mas eu sinto-me só,
Eis a velha história já carregada de pó,
Que, tantas vezes e por tantos repetida,
Perdeu já o sentido, de estar tão remexida.
Mas no entanto eu ainda a experimento
Tão real, amarga e simples quanto ela é.
É a pura verdade isto que aqui vos digo
Tanta gente à minha volta e eu só com meu umbigo.

Orgulhoso de carências e carente de orgulho
Fiquei sempre quedinho, nunca ousei fazer barulho.
Juntei-me, ingrato, comigo só à esquina
A tocar a concertina, a dançar um solidó.
Cuidei que no meu isolamento de quase tudo
Juntaria as forças para bradar um grito mudo.
Recusei as companhias com medo de não sei quê
Tornei-me neste anacoreta que aqui assim se vê.

Ah, que ando agora perdido, vagueando sem rumo.
Alinhar minha vida? Nem com fio de prumo!
Procuro, incessante, por um remendo,
Por uma linha que me cosa a alma.
Não sei quantos pontos irei levar,
Apenas sei que o golpe foi profundo,
Muito fundo, grande o suficiente
Para me conseguir fazer odiar o mundo.

Regresso ao Lar

« Ai, há quantos anos que eu parti chorando
deste meu saudoso, carinhoso lar!...
Foi há vinte?... Há trinta?... Nem eu sei já quando!...
Minha velha ama, que me estás fitando,
canta-me cantigas para me eu lembrar!...

Dei a volta ao mundo, dei a volta à vida...
Só achei enganos, decepções, pesar...
Oh, a ingénua alma tão desiludida!...
Minha velha ama, com a voz dorida.
canta-me cantigas de me adormentar!...

Trago de amargura o coração desfeito...
Vê que fundas mágoas no embaciado olhar!
Nunca eu saíra do meu ninho estreito!...
Minha velha ama, que me deste o peito,
canta-me cantigas para me embalar!...

Pôs-me Deus outrora no frouxel do ninho
pedrarias de astros, gemas de luar...
Tudo me roubaram, vê, pelo caminho!...
Minha velha ama, sou um pobrezinho...
Canta-me cantigas de fazer chorar!...

Como antigamente, no regaço amado
(Venho morto, morto!...), deixa-me deitar!
Ai o teu menino como está mudado!
Minha velha ama, como está mudado!
Canta-lhe cantigas de dormir, sonhar!...

Canta-me cantigas manso, muito manso...
tristes, muito tristes, como à noite o mar...
Canta-me cantigas para ver se alcanço
que a minha alma durma, tenha paz, descanso,
quando a morte, em breve, ma vier buscar! »

Guerra Junqueiro, in 'Os Simples'

Genuinidade Fingida

A sensibilidade da vida tenho-a no coração,
Não a tenho na língua, não a tenho na mão.
Tenho-a no lugar onde minhas emoções estão.
Estão no meu coração, que é como quem diz!
São intelecto, do qual sou ainda aprendiz...
Ainda me permito demasiado à censura do giz.
Seus traços brancos me tornam fingida a essência
Duma artificial poesia que sempre raza a vivência
Sem penetrar nunca o âmago da genuína dolência,
Dessa dor que me consome viva a alma atormentada
Que não consigo expressar com a franqueza desejada
E com a naturalidade da vera emoção não pensada.
O mais inato sentir não consegue nunca ser comunicado
Com palavras, artifícios mentirosos do meu eu danado.
É que o materializar dos sentimentos é sempre pecado,
É anular o arrepio original que a sensação prima provoca,
Desmentir o inconsciente com que essa verdade nos toca,
Fazer sentir o desprazer de fingir uma emoção oca,
Mera estética lírica que se encontra vazia no interior
E nunca consegue genuinamente mostrar ao outro a real dor,
Que é a por mim sentida, por mim vivida com franco ardor!
Mas é o que se tem, aquilo que me é humanamente possível,
Descrever a emoção com a beleza e detalhe de maior nível
E esperar que quem lê a imagine a uma precisão incrível
Capaz de a fazer ter um vislumbre do que o meu eu sente,
Proporcionando aos outros a sensibilidade mais rente,
Mais próxima da sensação tida pelo meu ser doente.

Fogo Fátuo

Le Feu Follet (1963), Louis Malle
Filme genial, o melhor retrato que já vi do desespero existencial e da depressão...


"Mato-me porque não me amaste, porque eu não te amei. Porque nossos laços se soltaram, mato-me para os apertar. Deixarei sobre ti uma marca indelével."

Explanações Alheias #2

"It’s quite obvious that I am worthless. I’ve made enough fun of myself with the words “heart” and “soul” to discover to my horror, one fine morning, that self-deprecation would spare me no more! I can’t imagine anything as barren as myself. I possess neither anyone nor anything. I expect nothing.

I remember having burst out laughing. I remember having had my backbone frozen to the idea of glory. I remember having been eager for love. There is no longer any life in me. I never find myself apart from boredom, I have no place.
Everything has been overrated! The war overrated! The “artificial paradise” overrated! And love, too!…

What a kick in the ass! But you go on. There is only one single thing in the world that is intolerable: the consciousness of its mediocrity.”

Jacques Rigaut

Explanações Alheias #1

«There’s no reason to live, but there’s no reason to die, either.
The only way we can still show our contempt for life is to accept it.
Life is not worth the bother of leaving it.

Out of charity, one might spare a few individuals the trouble of living, but what about oneself? Despair, indifference, betrayal, fidelity, solitude, the family, freedom, weight, money, poverty, love, absence of love, syphilis, health, sleep, insomnia, desire, impotence, platitudes, art, honesty, dishonor, mediocrity, intelligence – nothing there to make a fuss about.

We know only too well what those things are made of, no point in watching for them.»

Jacques Rigaut 

Átropos, Minha Belladonna

I

Belladonna, minha dona bela!
Que em ti trazes o doce veneno
De uma trágica morte amarela.
(Salvação do meu viver pequeno...)

Tu, tão bela!, que nas sombras moras
E que quase sempre o sol evitas,
Deixa-me comer tuas amoras
Embriagar-me com as pepitas!

Anda ter comigo, Belladonna,
O destino uniu-nos sem igual!
Não t'armes comigo em primadonna,
Quero a libertação deste mal!

Dilata-me as  minhas pupilas,
Que quero-te eu olhar melhor!
Amansa-me estes cruéis espasmos,
Deste meu persistir com dor...

Como te queriam os assírios,
Desejo-te ávido agora eu!
Afasta-me os pensamentos tristes,
Leva p'ra longe de mim o breu...


II

Ai Átropos, minha bela moura
Vem, funesta, meu fio vital ceifar
Traz contigo essa fatal tesoura
Vem, sinistra, meu óbito firmar!

Pois o fio de todo o amanhã,
Que tua irmã Cloto me cardou,
Era só de cânhamo e de lã:
Tornou-me o desgraçado que sou.

Já Laquesis tão antes o previra
Aquando o medir desta minha tira:
Desaparecerei ao som da lira
Na brevidade com que um sopro expira.

Vós, todas três fatais irmãs moiras,
Do destino donas e senhoras,
Porque não me destes fitas louras?
Porquê tão curtas as minhas horas?

Ambiguidades

Vivo a minha parca vida
Em sobressaltos e solavancos,
Tenho os sentimentos mancos
E a consciência entorpecida...

Pois aquando me alegro
Não tarda o desengano!
Sinto o cerrar do pano
Da minha felicidade.

Mas porquê? Se ainda
Nem sinto o peso da idade...
Haverá uma razão
Para tal ambiguidade?

Soneto Esquizóide

Desperta a primaveril nostalgia,
Após longos e chorosos dias
De densa, tão cinzenta invernia
De fazer finar em noites frias.

Brilha-me o sol nos olhos, agora.
Momentaneamente esqueço as vis horas
Em que o meu ser sempre se demora
E tarda a sair, sem vislumbrar melhoras.

Oh bipolaridade nefasta que me corrompes!
Que a mim me trancas em negros pensamentos
E só por vezes levas à rua beber das fontes!

Deixa-me gozar o fulgor deste sol brilhante!
Livra-me, por favor, de todos os tormentos...
Só quero lapidar minha vida como diamante!

Ébrios

O Mundo gira e gira, e volta a girar
Dá mais uma volta, não pode parar
Nós, os ébrios, aqui nos quedamos
Por sermos tão loucos, às vezes erramos

Se o que nos move, ao chão nos agarra
Prefiro o imóvel àquilo que amarra
Prefiro a desgraça ao som da toada
Ao menos sou livre e não tenho nada

Fixos aqui, o mundo observamos
Entorpecidos no acumular dos anos.
Inertes, apáticos, algures perdidos
Não nos mexemos... Contemplamos!

Esta passividade com que a terra se mexe
A vagarosidade com que o verde cresce
com que Lua sobe, enquanto o Sol desce
E uma parte de nós, sempre desvanece.

Serenos somos e sempre seremos
Não queremos agitação em mundos terrenos
Pois o dia virá em que sucumbiremos
E assim se findará o que vivemos.

Alors, On Y Va?

Excusez-moi, Mademoiselle, mas...
Dê-me a sua mão, venha pular mundos comigo.
Não se inquiete com o que pensam os outros,
Deixe essa monotonia enfadonha para trás,
Seja a cobra que muda de pele pela nova estação.
Venha comigo desenterrar tesouros ao fundo do arco-íris.
Quer dizer, afinal de contas o mundo não é assim tão cinzento,
Também nos será permitido gozar-lhe as cores de quando em vez.
"Tem dias... Isto já não sai é da cepa torta", dirá você
A fazer lembrar um velho do Restelo com o qual nos cruzaremos
Num banco qualquer, ao dobrar da esquina das nossas vidas cruzadas.
"E vamo-nos assim, do pé para a mão?" Assim mesmo, sem mais nem quê.
Levamos a roupa do corpo e meia dúzia de tostões para a merenda. Amor e uma cabana.
Depois logo se vê. Prometo matar-lhe a fome se você me matar a minha...
Vá por mim, e tire essa cara de espanto espantado: Tristezas não pagam dívidas.
(Você sorri)
Precioso esse sorriso que floresceu em sua cara, assim gosto mais!
Guarde-o com a sua vida, que eu vou guardar a sua com a minha.
Proteja-o bem, que o mundo fica tão mais lindo assim,
Quando mostra as teclas brancas de piano que lhe adornam a boca
Por entre esses cortinados vermelhos que são seus lábios encarniçados.
Fique sempre alerta! Isto hoje em dia ninguém está livre da gatunagem!
Se a senhora não se cuida, roubam-lhe o brilho dos dentes e as pérolas dos olhos.
Mas como dizia, dê-me a sua mão e acompanhe-me nesta viagem ao centro de nosso amor.
Se lhe vier a custar andar, salte para as minhas cavalitas, e vamos a trote de paixão.
Vai ver que lhe vai parecer o jogo da macaca, vamos num pé e vimos no outro.
Prometo que irá ser por toda a eternidade, mas verá que nem vai dar pelo tempo...
Quando abrir os olhos pela manhã apenas recordará réstias deste sonho bom,
Mas ainda assim saber-lhe-á pela vida, nunca mais se olhará ao espelho do mesmo modo.
O seu dia-a-dia ganhará outro brio. Sabe, estas revelações acontecem uma vez na vida.
É deixá-las mudar-nos selvaticamente por dentro, ao jeito que lhes dá na gana.
Ainda não está convencida? Ande lá, vai ver que não se vai arrepender!
Pelo menos na terra dos sonhos não há prisões, nada é estanque, tudo pode acontecer.

Alors, on y va?

Aqui Jaz Uma Vida

E quando aqueles dias há
em que nos encontramos perdidos,
sem nada que nos entretenha
ou nos ocupe o pensamento?
Nessas alturas apraz-me fumar
orgulhosamente um ocioso cigarro,
com a desculpa ilusória de que mata
a pasmaceira em que ando submergido.
Saco, delicadamente, o palito nicotínico
enquanto exclamo aos meus botões:
"Mais um prego para o caixão!"
Com a outra mão estalo a tampa do zippo,
Mola aguda que, simultaneamente, me estala o pensar
com a consciência da finitude irrevogável.
Acendo penosamente o cigarro.
Aos poucos, o charuto vai-se consumindo
ao ritmo das minha baforadas,
como que a imitar o esvair dos meus dias,
ciclicamente marcados pelo toque de despertador.
Apercebo-me mais uma vez da minha finitude,
"É assim a vida!" (Ou será antes a morte?)

Entretanto, o fumo do tabaco
vai-me tornando amarela a existência.
A fumaça desce-me pela garganta
tal e qual insuflasse minha própria alma.
Do mesmo modo, vagaroso, a exalo
ao jeito do meu espírito a abandonar-me,
expiando assim todos os meus pecados.
Sai de mim o vapor escuro, deixando apenas
no meu cadáver o negro do alcatrão,
fuligem essa que já nem se distingue
da negrura do meu próprio ser.
Morre-se-me o cigarro na ponta dos dedos.
Com desprezo, lanço o míssil da beata ao chão,
desprezo manifesto do meu próprio existir.
A ponta da minha bota ao encontro vai
da ponta incandescente da pirisca finda
(Toque de dedos de uma Criação de Adão tabágica).
Esmago o que resta da cabeça do cigarro
que encorpora o que resta do meu orgulho ferido.
Acaba-se mais uma pausa mortificadora,
reacende a pausa maior do marasmo.

Aqui jaz um filtro, aqui jaz uma vida.


Minudências

Estendo-me ao comprido na cama.
Tenho a alma caquéctica e
Há um pesar demasiadamente familiar
Que se me vai acometendo.
Sinto o peito a colapsar
Nesta manhã de melancolia invernal
Como de outra não há memória.

Ponho a música a tocar.
Nascem etéreas melodias depressivas
Suspensas no ar rarefeito
Cada vez mais insuportável de respirar.
Penetram-me as notas dessas harmonias,
Pesadas e graves, nos ouvidos dolorosos,
Comprimindo o meu íntimo a uma lágrima.

Ergo-me da cama, penosamente.
Há uma cadeira que fita o horizonte
Através de uma janela de metro e meio por dois
(Tão maior que a minha alma).
Sento-me nela, com um vagar de deuses,
Contemplo o fundir do verde vegetal ao negro citadino.
Apercebo-me do ridículo que sou...

Tudo parece continuar no seu ritmo
Alegre e alheio, omnipotente de tudo.
Só em mim esta apatia nunca muda,
Antes pelo contrário, se adensa,
Se condensa em lancinantes pontadas no peito.
O sol, misericordioso, brilha ao largo,
Mas sem nunca me conseguir atingir.

Sou um turbilhão, buraco negro
Sedento de toda a luz e matéria
A qual absorvo impiedosamente
Sem não me conseguir transformar.
Transformo-as eu, essa luminosidades,
Essas matérias físico-químicas,
Em nadas imperceptíveis. Impreenchível.

Sorvo o veneno que me saliva na boca.
Tento conformar-me ao meu ridículo.
A esperança de que melhores dias virão
Põe-me o espírito ansioso em reboliço.
Continuo, impávido, a mirar pela janela
(Espelho mentiroso de minha alma).
Deixem-me estar! Deixem-me ser, foda-se!

Fado.Fardo.Foda-se

Calminha, coração...
Vai com calma,
não te exaltes!
Que se passa?
Pensas que é por ti
que o mundo vai parar?

O mundo nunca pára,
seja por quem for,
muito menos por ti,
um ignóbil rastejante
que reptila as suas mágoas
à espera da pena alheia...

És um triste!
Faz-te um homem,
ainda vais a tempo.
Achas mesmo
que há alguém que se vai
dignar a esperar por ti?

O mundo nunca espera,
continua sempre a girar,
alheio a tudo e todos...
Estejas cá ou não estejas.
Para os outros?
Tanto se lhes faz!

És só mais um,
mais um empecilho,
mais um fardo pesado.
Não tens o direito
de chatear ninguém.
Então porquê chateares-te?

Ah pá, cresce e aparece!
Deixa-te dessas lamúrias!
Bebe mais uma, que isso passa...
Assim como tu passarás,
e não vai ser preciso muito tempo
para que mais ninguém te lembre.

És efémero como tudo na vida.
Um dia há em que desapareces
e, tirando tua família e os teus,
nem vai haver ninguém a dar por isso.
E mesmo os teus hão-de se habituar
e, eventualmente, deixar de se importar.

Tudo prosseguirá no ritmo usual,
sem grandes inquietações,
naquela indiferença morna e acutilante
de uma vaca melancólica que pasta.
Já dizia o outro: Tu és pó,
de lá vieste, para lá voltarás.

E sabes que mais?
Se te custa assim tanto
arrastares-te por este mundo
mais um bom par de anos,
Fica a saber que o fim é sempre
sete palmos abaixo de terra!

Portanto, não te exasperes.
Se assim te apraz,
sê esperto e toma já avanço,
toma o teu lugar moroso
na fila burocrática do limbo.
Ora faça-se o obséquio!

Olha lá ao fundo...
Já vejo o nó da corda,
prontinho a enrolar-se-te
no teu pescoço atónito!
Até já estou a imaginar...
O sufoco, lento, agonizante.

Mas não te apoquentes!
Vai ser assim para toda a gente.
Ou pensavas que podias sair
desta história vivo?
Ah, desengana-te, não saías,
assim até levas um avanço.

Das coisas mais bonitas que tive o prazer de ouvir nos últimos tempos...


Sinto a minha vida como um peso!

Sinto a minha vida como um peso!
Sinto um esmagador cansaço
De tudo o que me rodeia.
O lufa-lufa do quotidiano
Vai-me roendo por dentro
Sem que me possa dar conta,
Até que dentro de mim
Fica a restar apenas e só
Um soberbo, gigantesco,
Infindável vazio.

E não querem depois
Que as pessoas se matem?
Pois como há-de tal
Não acontecer?
Não há nada a que agarrar,
Nada que nos possa salvar,
Nenhuma boia salva-vidas
Que prontamente nos resgate
Deste marasmo sem fim,
Deste tédio que nos consome.

Não há vedante que consiga
Preencher este excessivo buraco
Que no peito se me vai abrindo
E pelo qual, lentamente,
Se vai, dorido, esvaindo
Em lamentos meu coração,
A minha força de viver,
Meu ânimo, o prazer,
Tudo, tudo, tudo e tudo
O que permite sobreviver.

Oh, desditosa vida maldita...
Que no cismar é que está o mal.
Pensasse menos, vivesse mais
Desfrutasse assim os prazeres banais
De mais um dia-a-dia tão normal
Que se me oferece de jeito natural.
Mas era preciso desprender-me dos "ais"
Afastar os meus pensamentos imorais
Para assim poder, finalmente,
Passar a viver completo e contente.
A tristeza em forma de uma melodia.


Afogamento

De tempos a tempos, quando não sempre,
Invade-me o corpo um impiedoso amor
E transborda pelos meus poros,
Materializa-se em grossas lágrimas,
Cristalinas da mais pura mágoa,
Em suspiros e tremores de alucinado,
Sintomas de não ser, em retorno, amado.

Mas não há nunca quem, genuinamente,
Seja lenço de seda pura e branca
Para me limpar esse louco amor-suor,
Que dos poros me vai escorrendo e encharcando.
Não existe quem, seco e murcho,
Queira matar a sede de um trago,
com as minhas lágrimas salgadas,
Húmidas torrentes nunca acalentadas.

E vem então, vagarosa, a resignação,
Com os seus vigorosos braços fatídicos
Empurrando para baixo o meu amor-cabeça,
Mergulhando-a no pantanal de minha paixão
Repleto do lodo do ciúme e da amargura...
O nariz entope-se-me, impávido e sereno,
Quase sem estrebuchar, desse amor imundo,
E nada mais posso eu fazer, exangue que estou,
A não ser aceitar meu fatum de renegado.

Mas eis que quando, inesperadamente
Meu amor ganha vermelhas guelras de Tritão,
Qual Poseidon furioso de tridente na mão,
Voltando a resfolegar, a ganhar um ímpeto doente,
E soprando os búzios da musical calmaria,
Fere os tímpanos surdos dessa resignação,
Tomando um novo fulgor, insidioso e atroz,
Pois se bem que novamente me desperta a vida,
Tão igualmente me traz o desditoso tormento
De não me ver reciprocamente desejado e querido.

Sangração

Sinto-me tão cheio.
Tão vazio.
Não sei...

Queria rasgar meu peito,
Libertar o que cá dentro mora.
Oprimido deste jeito
Não duro mais uma hora.

Ouvi dizer que
De desgosto também se morre.
Meu coração já nem bombeia
O sangue que em mim corre.
                                       [ou corria]

Uma das músicas mais belas e melancólicas que tive o prazer de conhecer há pouco tempo...

Baptismo

Criei hoje, dia 27 de março de 2013, o presente blog, o qual intitulei de "De Desgosto Também se Morre"...
Será um blog como tantos outros, onde vou aproveitar para deixar alguns estados de alma, alguns poemas ou rascunhos que eventualmente escreva, poemas com os quais me identifico, imagens ou músicas que me são queridas, e por aí vai...

Considero assim abertas as hostes!