Veredas

...O trambolho que é sermos,
que é fazer subsistir esta vida!...
Percorremos nosso caminho
sempre aos círculos, às voltas,
sem achar um princípio ou um fim
(Como é próprio do andar à roda).
Vagueamos ébrios, zonzos,
tentando enveredar no caminho
que nos aconselham seguir.
E nós lá vamos, como ovelhas
num rebanho, às apalpadelas,
a tactear o escuro do desconhecido,
Indo contra as paredes,
a tabelar de uma para outra
qual bola de ping pong...
Zombies esbarrando nos
mamarrachos da nossa existência.
Tentamos seguir o caminho
que vemos os outros percorrer,
já que chegámos a este mundo
sem saber o destino da viagem,
onde ter que ir.
Chegámos sem nenhuma morada,
sem nenhum destino ou meta final.
Temos nós que inventar
uma morada, uma direcção
(Ou ver para onde os outros se vão dirigindo,
e ir atrás. Também dá!)
Por vezes lá damos com o palacete
que designámos como nossa morada,
como nosso objectivo a cumprir.
Entramos a medo, quase sempre.
Mas deslumbrados.
Com o palacete.
Connosco mesmos
por termos sabido acertar com a direccção.
Mas logo nos apercebemos
que não vale a pena ter medo.
Nem nos deslumbrarmos.
Lá não mora ninguém. Nunca mora.
(E se não há Homens, não há que recear!
Nem há a quem exibir nosso triunfo...)
Vasculhamos todas as divisões.
Mas nada!
Hipotecámos tanto do nosso tempo
em busca desta morada,
em busca do prémio final
que nos daria direito
a viver quietos e sossegados
como grandes barões triunfantes.
Mas não!
Esta casa não tem recheio,
é apenas um esqueleto de paredes
que alberga no seu interior
a única coisa que a vida nos pode dar:
o vazio da existência!
Viramos a casa do avesso
em busca de algo
que nos possa justificar
tão penosa e demorada viagem!
Tudo oco, tudo vazio...
Pó, só resta o pó
que é a evidência do tempo
que perdemos em busca de tal direcção.
Pó e os retratos antigos
de nossa infância, claro.
Cobertos, obviamente,
desse mesmo pó do tempo.
Esquecemo-nos da razão
que nos fez entrar.
Não sabemos bem a razão, até,
do porquê de termos procurado
tal morada.
Vendo bem as coisas, a razão foi
não ter tido mais nenhuma outra razão...
Foi o facto de quem inventou este jogo
não nos ter explicado
as regras e o seu objectivo
quando estávamos ainda na casa de partida
e os dados não haviam sido lançados.
É! Um jogo de sorte e azar!
É o que isto acaba por ser.
Somos peões de tabuleiro.
E os deuses a brincar connosco!
Lançam os dados e fazem-nos andar
aos avanços e recuos.
(E este vai-e-vem descabido
por vezes faz nos enjoar,
há que mandar parar o carrossel
para apanhar ar.
E espertos que somos,
e fartos que estamos,
por vezes temos a ousadia
de fugir, sem deixar rastro,
deixando os deuses loucos à nossa procura.
E a mim isto sempre me pareceu o mais sensato!)
Vivemos como calha e nem damos conta.
É a vida que nos vive a nós,
Não somos nós que a vivemos.

Moldagem

Tanto medo a gente tem
de se expor tal como é...
Escondemos da nossa mãe
aquele "eu" de cabaré
que não se mostra a ninguém.

Ocultamos dos amigos
nossos desejos mais sórdidos.
Conservamos em jazigos
quaisquer devaneios mórbidos
que os outros achem perigos.

E reprimem-se as ideias
como quem encolhe um peido
co'a força de panaceias.
É melhor ficar retido
com receio às diarreias.

Não podemos destoar,
há que seguir no carreiro.
Ninguém p'ra desafiar
nem que queira ser inteiro,
nem erguer ondas no mar.

Neste mar de ovelhas mansas
que é o mundo actual.
Não se ousa bailar danças
que provoquem a moral
ou possam chocar crianças.

Nascemos de um só molde
que tem um formato ímpar.
Mas vem logo quem nos tolde
de plástico d'embalar
e nos force a contra-molde.

E se ousas provocar
os dogmas instituídos,
ou se tentas afrontar,
berrar, ou fazer ruídos,
vêm mandar-te calar.

E tu calas e consentes,
ficas quieto lá na toca;
Partem quantos são os dentes
que tens em tua boca
se te armas aos valentes.

Saudosismo

A saudade...
Ai a saudade!

A saudade
é o denominador comum
das nossas vidas.

Divide, repetidamente,
nossas memórias boas
e más...
Esbate-as e transforma-as,
tornado-lhes os contornos difusos
até não se distinguir já o certo
do não certo.

Tende a fazer-nos esquecer
o mau
e a amplificar o bom.
E eu não sei porque razão!,
Se é o mau, ou menos bom,
que em nossas vidas predomina,
sobretudo.

Essa saudade,
que reduz recordações
a pontadas no peito
asfixiantes,
a esvoaçar
por sobre a neblina
da memória que ficou
do nosso
passado,

Traz-nos
o tal misto de tristeza
e alegria
a que damos o nome de
nostalgia.

Tristeza
por os momentos
haverem já passado
e não termos dado conta.
Alegria
porque os vivemos
e temos memória disso.

...Saudade! saudade!
Que nos deixas em delay,
a viver
instantes adiados.
Só gozamos o presente
nas recordações futuras.

Esse presente,
que é sempre
tão melhor
quando é
passado...
Quando é visto
à distância
de uma vida e meia.

Porquê,
pergunto-me?

O que se sabe é que,
quando a saudade se instala,
ficamos divididos,
subtraídos,

e damos sempre
resto
zero.

Fim

«Alma, enfim descansa
Na desesperança.

Alma, esquece e passa:
Dorme, enfim segura
Dessa última graça
Que é toda a ventura.

E à Saudade em flor
Que o teu sonho lindo
Perfumou de amor,
Diz-lhe adeus, sorrindo…

Que Ela há-de escutar-te,
Pálida, a entender-te!
E, no espanto enorme,
Sonhando envolver-te,
Triste, há-de embalar-te
– «Dorme… dorme… dorme…» –
Como a adormecer-te.»

Guilherme de Faria, in Saudade Minha [1929]

"13 Angels Standing Guard 'Round The Side Of Your Bed"

Além-tédio

"Nada me expira já, nada me vive ---
Nem a tristeza nem as horas belas.
De as não ter e de nunca vir a tê-las,
Fartam-me até as coisas que não tive.

Como eu quisera, enfim de alma esquecida,
Dormir em paz num leito de hospital...
Cansei dentro de mim, cansei a vida
De tanto a divagar em luz irreal.

Outrora imaginei escalar os céus
À força de ambição e nostalgia,
E doente-de-Novo, fui-me Deus
No grande rastro fulvo que me ardia.

Parti. Mas logo regressei à dor,
Pois tudo me ruiu... Tudo era igual:
A quimera, cingida, era real,
A própria maravilha tinha cor!

Ecoando-me em silêncio, a noite escura
Baixou-me assim na queda sem remédio;
Eu próprio me traguei na profundura,
Me sequei todo, endureci de tédio.

E só me resta hoje uma alegria:
É que, de tão iguais e tão vazios,
Os instantes me esvoam dia a dia
Cada vez mais velozes, mais esguios..."


Mário de Sá-Carneiro



Salto no abismo.

Central do Brasil (1998), Walter Salles

Quanta sensibilidade...

Alho-Porro

Acendo. Inalo. Expulso.
Repito.
Continuo envolto no mesmo meio físico
em que momentos antes me encontrava.
Parece-me, pelo menos...
Mas no entanto...
De repente...
As cores saltam bravias
da realidade
E entram-me, exageradamente vivas,
pela retina.
Brilhos, luzes, ondas electromagnéticas
das mais diferentes frequências
cintilam por todo o lado
como se estivesse dentro
de uma bola de espelhos.
As imagens rodam num frenezim disparatado
mesmo em frente dos meus olhos!
Mas ao invés de me sentir tonto,
sinto-me bem como em sonhos cor-de-rosa.
Sons agudos e amplificados
são disparados, também eles,
em todo o meu redor,
saltando de todos os lados,
atropelando-se uns aos outros
sem que eu tenha tempo de processar sequer
a cacofonia do ruído anterior,
perfurando-me os tímpanos
com estridentes sensações
que eu não conheço.
A relva em que me encontro deitado
parece agora mais viva,
mais macia,
mais real.
A saliva evaporou-se da minha boca
e deixou-me a balbuciar bocejos
por entre os lábios inertes.
Sinto o corpo numa moleza estúpida
mas tenho explosões
a acontecerem dentro de mim.
O vento sopra e congela o tempo.
Toda esta barafunda de sensações,
estas sinestesias hiperbolizadas,
parecem demorar horas.
No entanto são segundos,
que explodem com toda a violência
nos meus sentidos,
fazendo-me perder a percepção
do tempo.

Carne Mal-Dita

Não sei se será só minha impressão,
mas este mundo virou um deboche!
Já nem preciso largar um tostão
para eu, guloso!, gozar de um broche.

E eu trago as bolas dos olhos pasmadas
com a luxúria do dobrar do século!
Mulheres não querem já ser amadas,
querem apenas do homem seu espéculo!

E eles dizem, sem pudor, «Pões-me um aço!»
E elas dão o sorriso mas não só.
Apalpam-se e riem com ar devasso,
e vão se devorando sem ter dó!

Peço mil desculpas, o meu perdão!
Garanto-vos não ser minha intenção
chocar ninguém com má educação...
Apenas faço uma breve questão:

Para onde se escapou a decência
(Estou pasmado, nunca vi nada igual!)
Para o mundo entrar nesta decadência
dos tão puros valores e da moral?

Não é qu'eu, honestamente, me importe!
Por mim continuem, já que aqui eu
nunca tive em engates muita sorte,
e sempre estimei muito o prazer meu.

Vida Em Claro

Chego do emprego tarde a casa,
Venho cansado que nem um cão,
Sinto uma moleza que me arrasa,
Estendo-me ao comprido no colchão.

Porém o sono tarda em pegar,
Coisa que vem sendo recorrente,
Antevejo a insónia a chegar
E trago o cérebro tão dormente!

Dou voltas e revoltas na cama,
Nada há que me faça dormir.
Levanto-me do leito (Que drama!)
E vou à varanda distrair.

Queimo cigarro atrás de cigarro
Inspirando, raivoso, a fumaça.
Horas passam num vagar bizarro
Durante outra noitada sem graça.

O relógio dá a meia-noite,
Ouve-se ressoar o badalo,
Gasta-se a noite, renasce o dia
Ouve-se ao longe o cantar dum galo.

É já dia, já veio a manhã!
Finalmente venceu-me o cansaço...
Chega o sono em pézinhos de lã,
Do tabaco já só sobra o maço.

Deixo-me cair entre os lençóis,
Absorvo o fresco que a cama tinha,
Mas toca logo o despertador,
Essa tão estridente campainha!

Nem deu tempo de fechar os olhos
Este meu tão breve dormitar,
Nem deu p'ra saber da cama os folhos,
Ando há dias sem descansar...

Chegou o tempo de levantar
Ainda eu não pude dormir nada,
Urge a pressa p'ra ir trabalhar...
Que vida esta! Mas que massada!

Vou andando em piloto automático
A caminho dum reles trabalho,
Sinto o corpo num queixar somático
Relembrando-me que eu nada valho...

Começo o execrável ofício
Que me vai dando para comer,
E permite sustentar o vício
de ver os cigarros a arder.

Mas é este um labutar sem gozo,
e quando é sem gosto, muito cansa.
Passo o tempo num sofrer penoso
E em mim só o desespero avança!

Como tudo isto é detestável,
Ter que trabalhar para viver!
Esta vida é tão abominável...
Só queria poder desnascer!

Ao menos que m'ajudasse o sono,
E que eu pudesse, enfim, descansar...
O dormir largou-me ao abandono
Deixou-me, azoado, a definhar!