Um dia não muito longe não muito perto

«Às vezes sabes sinto-me farto
por tudo isto ser sempre assim
Um dia não muito longe não muito perto
um dia muito normal um dia quotidiano
um dia não é que eu pareça lá muito hirto
entrarás no quarto e chamarás por mim
e digo-te já que tenho pena de não responder
de não sair do meu ar vagamente absorto
farei um esforço parece mas nada a fazer
hás-de dizer que pareço morto
que disparate dizias tu que houve um surto
não sabes de quê não muito perto
e eu sem nada pra te dizer
um pouco farto não muito hirto e vagamente absorto
não muito perto desse tal surto
queres tu ver que hei-de estar morto? »

Ruy Belo, in Homem de Palavra[s]

Porque o melhor, enfim...

«Porque o melhor, enfim,
É não ouvir nem ver...
Passarem sobre mim
E nada me doer!

Sorrindo interiormente,
Com as pálpebras cerradas,
Às águas da torrente
Já tão longe passadas.

Rixas, tumultos, lutas,
Não me fazerem dano...
Alheio às vãs labutas,
Às estações do ano.

Passar o estio, o outono,
A poda, a cava, e a redra,
E eu dormindo um sono
Debaixo duma pedra.

Melhor até se o acaso
O leito me reserva
No prado extenso e raso
Apenas sob a erva

Que Abril copioso ensope...
E, esvelto, a intervalos
Fustigue-me o galope
De bandos de cavalos.

Ou no serrano mato,
A brigas tão propício,
Onde o viver ingrato
Dispõe ao sacrifício

Das vidas, mortes duras
Ruam pelas quebradas,
Com choques de armaduras
E tinidos de espadas...

Ou sob o piso, até,
Infame e vil da rua,
Onde a torva ralé
Irrompe, tumultua,

Se estorce, vocifera,
Selvagem nos conflitos,
Com ímpetos de fera
Nos olhos, saltos, gritos...

Roubos, assassinatos!
Horas jamais tranquilas,
Em brutos pugilatos
Fracturam-se as maxilas...

E eu sob a terra firme,
Compacta, recalcada,
Muito quietinho. A rir-me
De não me doer nada.»


Camilo Pessanha, in Clepsidra

Os mares, minha bela, não se movem

«Os mares, minha bela, não se movem;
O brando norte assopra, nem diviso
Uma nuvem sequer na esfera toda;
O destro nauta aqui não é preciso;
Eu só conduzo a nau, eu só modero
     Do seu governo a roda.

Mas ah! que o sul carrega, o mar se empola,
Rasga-se a vela, o mastaréu se parte!
Qualquer varão prudente aqui já teme;
Não tenho a necessária força e arte.
Corra o sábio piloto, corra e venha
     Reger o duro leme.

Como sucede à nau no mar, sucede
Aos homens na ventura e na desgraça;
Basta ao feliz não ter total demência;
Mas quem de venturoso a triste passa,
Deve entregar o leme do discurso
     Nas mãos da sã prudência.

Todo o céu se cobriu, os raios chovem;
E esta alma, em tanta pena consternada,
Nem sabe aonde possa achar conforto.
Ah! não, não tardes, vem, Marília amada,
Toma o leme da nau, mareia o pano,
     Vai-a salvar no porto!

Mas ouço já de Amor as sábias vozes:
Ele me diz que sofra, se não, morro;
E perco então, se morro, uns doces laços.
Não quero já, Marília, mais socorro;
Oh! ditoso sofrer, que lucrar pode
     A glória dos teus braços!»

Tomáz António Gonzaga, in Marília de Dirceu (1792)
"And we walk into the fog, we don't look back because we know there is no one looking back at us."

A 20 de Novembro

"A 20 de Novembro de 2006, na cidade alemã de Emsdetten, um jovem rapaz de 18 anos entrou armado no seu antigo liceu para matar antigos colegas e professores. Depois de ter ferido várias pessoas, Sebastian Bosse vira a arma contra ele e suicida-se. Alguns dias antes, tinha deixado na Internet um testemunho desesperado onde anunciava o seu sinistre intento como última esperança para ser ouvido.

A partir do diário íntimo deixado pelo adolescente deste suicídio programado, Lars Norén escreve um monólogo, um poema intenso, violento, incómodo, provocador e trágico ao mesmo tempo. Um texto que interpela directamente os espectadores e os torna testemunhas e companheiros desta horrível aventura.

Que mundo é este, que tende a excluir os que não são “performantes”, os menos dotados, os mais vulneráveis e que leva um jovem a cometer um acto de tão terríveis consequências. O mundo tornou-se tão frio e duro como o cano de uma arma?"

Quando eu morrer, a terra aberta me beba de um trago e esqueça

«Quando eu morrer, a terra aberta
Me beba de um trago
E esqueça.
Aos deuses minha oferta
É levar o que trago:
Eu, dos pés à cabeça.

Assim, com ervas altas
Acabam os que começam.
Que Deus nos perdoe as faltas!
Dizem: "A terra que nos come":
Eu digo: "A que nos bebe" - e basta.
Somos só água que se some:
Choveu - e fomos
Na vida gasta.»

Vitorino Nemésio, in Eu, Comovido a Oeste