Esquiva

Sei! Esses teus olhos esquivos...
Essa tua língua lassa...
Não podiam mais 'star vivos
Nem suportar tal desgraça!

Escorreste por tantas mãos,
Qual enguia já cansada,
Só tiveste afectos vãos,
Não soubeste ser amada.

Puta e reles te chamaram,
E os ouvidos tu tapaste.
Sei que todos te usaram...
Que mil mágoas não choraste!

Lamentos à tua sorte
Partilhaste c'os demais,
Mas mandaram-te à morte
Por pecados capitais.

Deram-te um tal desprezo,
Obrigaram-te a morrer!
Saiu todo o mundo ileso
Da culpa de em ti não crer.

Como foste tu cair
Neste enorme e vil engodo?
Nunca te vi eu sorrir...
...Rastejaste em tanto lodo!

Decidiste vir t'embora
Deste lugar ultrajante,
Largast'em tão boa hora
Esta vida amargurante.

Opção, julgo, a mais sensata
(Não creio estar enganado!),
Esta gente que se mata
Ganha a paz do outro lado.

Bela Entorpecida

Eu podia dormir
para sempre,

E só acordar
de vez em quando,

Para assim ter
o prazer
da consciência

de estar dormindo.

Rodendros

A paixão rói-me por dentro,
Corrompe-me a seriedade.
Dou por mim obsessivo,
Um tanto compulsivo,
Embeiçado em tal simplicidade
Que perco a noção da realidade.

Mas calo-me.
Calo-me e não me revelo.
Guardo todos esses segredos para mim,
Esperando, estupidamente, o outro alguém.
Aguardando que esse alguém tome a iniciativa
Que eu nunca sou capaz de tomar.
E não é por falta de sentimento que não o faço,
Isso é certo!

E então pergunto:
Porquê as amarras que me prendem?
Porquê as mordaças que me calam?
Tudo isto que não é mais que uma timidez absurda
Que me torna o mais inerte dos inertes,
Condenando-me ao aprisionamento solitário
Dos meus mais inatos sentimentos.
Com os quais hei-de morrer, por não mais saber viver...

Arrhhh! Porra!

Mas porquê tanta força de sentimentos
Se ainda mais forte é a inércia que me cala a voz?

Fim-de-Tarde

Fumo a vida na ponta de um cigarro,
sorvendo delicadamente a nicotina
que me embala os sentidos.
Não espero nada.
No Príncipe Real reina a tranquilidade costumeira:
Os pássaros voam por sobre a minha cabeça,
passando rentes aos meus pensamentos
que se elevam altos no ar.
Jogam-se baralhos de cartas reformados
enquanto se discute a sueca da crise actual.
Os pombos debicam as migalhas
que algum sénior despojou pelo chão
como que a queimar os últimos cartuchos que lhe restam.
Crianças baloiçam alegres na ingenuidade da infância
entremeadas entre risos e picardias típicas da idade.
Há cães a passear donos descontraídos
que vão enganando assim o stress do lufa-lufa diário.
Estrangeiros pálidos e psicadélicos
bronzeiam a pele ao sol português,
enquanto sentem, deitados, a realidade fresca da relva.
Há outros que, alheados de tudo isto,
mergulham nas histórias de romances de capa mole,
submersos em enredos de heróis triunfantes
como certamente eu nunca serei.
Também há quem amortalhe múmias de ervas secas
com as pontas delicadas dos dedos,
deslizando depois a língua pelo limite do papel
como quem lambe os lábios doces de açúcar,
e selando, por fim, a cumplicidade amigável de um charro.
Acendem pavios que são paivas
e vem-lhes a paz que lhes inebria as sensações.
Confesso que lhes sinto alguma inveja
e que desejo ser o próximo do "gira a chucha".
Quero isto com o propósito do alheamento de tudo,
ou apenas de trocar dois dedos de conversa amigáveis
entre risos estridentes e companheiros.
Enquanto isto, a brisa sopra leve, levantando folhas
e envolvendo de mística todo este passar tempo dos outros...
E eu aqui. Sentado passivamente,
a ver tranquilamente tudo isto de fora
como quem vê peixes na montra de um aquário.
Comigo só uma caneta e um caderno
com os quais finjo brincar aos poetas.
O tempo vai passando moroso.
Já não penso nada e já espero tudo.
E gosto disto. E sinto-me calmo. E sabe bem.
Pudera que todos os dias fossem assim!