Olissipo

Sabe ao Tejo e sabe ao sal
e sabe à excessiva alma
de que é feito Portugal.
Tem gosto a eternidade,
ao que é velho e ao que é novo
e ao deslumbre e a saudade.

Cheiram a luz e a brilhos
suas colinas que o sol doira,
Raiada de becos, trilhos,
escadinhas, largos, travessas...
Há em si tanto mistério,
traz nela tantas promessas.

Esta urbe miscigenada,
que é só igual a si própria
e de todo o mundo arraçada,
Tem a volúpia da mulata,
a invulgaridade mourisca,
e a finura duma alva nata.

Respira-se o Fado nas tabernas
Com essa brandura e a tristeza
de que são feitas as coisas ternas.
Duas pontes, que são suas pernas,
atravessam, compridas, o rio
em dobrado abraço... Tão fraternas!

Cidade de minhas fantasias,
aqui me encontro e me perco nela
e nas suas idiossincrasias...
E o colorido do casario,
alegre adorno de sua face,
tinge as telas de quem pinta o rio.

Que outra cidade, senão a Branca?
Esta Olissipo que me agarrou
e me pôs no coração uma tranca...
E o romance que no seu céu voa
carrega o ar de dez mil odores:
E cheira bem, que cheira a Lisboa.

Prazeres Preguiçócios

Aquilo que mais gosto de fazer
É o acto de não se fazer nada
Deitar me na cama e não me mexer
Deixar vagaroso o tempo a correr
Ouvir música ao de leve tocada
Que ao ecoar, faz ouvidos doer...
Rejubilo em ter a mente apagada
Delicio-me em não pensar em nada
Em ter caminhos para percorrer
Ainda assim não me fazer à estrada.

Ai, doce marasmo que me acalenta a alma...
Um dia destes 'inda faleço de calma!

Dezputismo

Eram dez putas
a disputar
o déspota
entre si.

Despiram-se,
desesperadas,
a esperar
um sim.

Dispararam
disparates
ao acaso
sem fim.

Ele mirou-as
e eliminou-as
uma a uma
logo assim.

Dispuseram-lhe
dez pentelhos,
duas pernas
e um rim.

Ele esperou
depois expirou
e espirrou:
"Atchim!"

(Estava farto
de fartura,
ou enfartou
cá p'ra mim.)

Desgastadas,
as dez gatas
desengataram.
"Que ruim!"

Desfaleceram
dos fellatios
e das falácias
por fim.

E uma delas
com mazelas
amarelas
disse: "Enfim!"

Foram embora
sem demora
e ele ficou
num festim.

E foi assim.

Vitória, vitória!
Acabou a história
de que não há memória.
Fim.
Divino.

Versos Íntimos

«Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão – esta pantera –
Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!»

Augusto dos Anjos, in Eu (1912)

Lógica

«Ai d'aquelles que, um dia, depozeram
Firmes crenças n'um bem que lhes voou!
Ai dos que n'este mundo ainda esperam!
Terão a sorte de quem já esperou...

Ai dos pobrinhos, dos que já tiveram
Oiro e papeis que o vento lhes levou!
Ai dos que tem, que ainda não perderam,
Que amanhã, serão pobres como eu sou.

Ai dos que, hoje, amam e não são amados,
Que, algum dia, o serão, mas sem poder!
Ai dos que soffrem! ai dos desgraçados

Que, breve, não terão mais p'ra soffrer!
Ai dos que morrem, que lá vão levados!
Ai de nós que ainda temos de viver!»

António Nobre, in
Despedidas, 1895-1899