A minha alma é diferente de todas as outras almas!

«Tu não podes avaliar o tamanho do meu suplício... Não podes... A tua alma não compreende a minha... nem a tua, nem a de ninguém. Tenho horror à vida... meu amigo, tenho horror à vida... Tenho horror à morte; menos horror talvez... mais horror... ignoro... Não posso viver, não posso viver... Não quero morrer... não quero morrer... É horrível... horrível... Que ando a fazer neste mundo? O mesmo que as outras pessoas, bem sei... Ah! mas é justamente isso que me aterra, que me horroriza... Vivo como todos, à espera da velhice, percebes? À espera da morte, compreendes?
(…)
Hoje sou novo... Marcela é nova... Somos belos... Os nossos corpos, esbeltos, flexíveis... Os nossos lábios, ardentes; os nossos órgãos, vigorosos... Amamos e sabemos e podemos amar... A carne dum deseja a carne do outro; palpitando ao lado dela, esvai-se delirante, arfa morta de prazer... Dos nossos corpos brota a vida... Amamo-nos, somos novos... somos felizes... Mas amanhã?... Amanhã... Terrível! Seremos velhos... A carne amolecida, já não desejará a carne; ou, se a desejar, em vão se esforçará por fremir aos deliciosos contactos. O foco da vida, apagado, não inflamará os sentidos... A alma, que nunca envelhece, que ama sempre, já não saberá nem poderá amar!... Diante dum corpo encarquilhado e frio, eu recordarei esse mesmo corpo quando ele era fogo... mármore... mármore que ardia... Recordarei prazeres estonteantes em horríveis despojos... Morrerei de sede, junto da fonte onde outrora tanta vez bebi a vida a haustos largos... Recordar é morrer... E eu não tenho coragem para morrer desta maneira... Não tenho! Não hei de morrer assim!... Lembrar-me que cada dia me aproxima dessa hora fatal e não poder... não poder obstar a que os dias passem!... Ah! meu amigo, o meu cérebro está doente... Nada o curará... Se eu pudesse pensar, encarar as coisas como todos as encaram... Mas não posso... não posso... A minha alma é diferente de todas as outras almas!..»

Mário de Sá-Carneiro, in Loucura

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