Retorno À Origem

Aprontei a dar fuga da cidade
Com toda a possível fugacidade.
O bucólico estava prometido,
Já se sabe: o prometido é devido!

O frenético reboliço urbano
Causa me um alheamento tirano.
Faz-me ficar tal peixe fora d'água,
Fico vazio, perdura só mágoa!

Cinzenta cidade, negro alcatrão
Deixem-me fugir, larguem-me da mão!
Como é possível ar tão poluído?
Ensurdeci do tamanho ruído.

Tantas as pessoas, tal multidão!
Enjoo todas, sem haver excepção...
Todos tão iguais, os clones urbanos,
Seres artificiais, não mais humanos.

Não se vêem mais expressões faciais...
Rostos inúmeros, mas todos iguais!
E trazem todos a alma talhada
Das mesmas ideias, do mesmo nada!

A impessoalidade que a urbe tem
Faz-me chorar p'lo regaço de mãe...
Anseio por um alguém que m'embale
Neste mundo onde o tudo nada vale!

Levo as mãos à cara, arranho-me fundo.
Faz-me enlouquecer, este sítio imundo!
Contamina-me a alma, o corpo e a mente,
Há que fugir deste lugar doente.

Que Importa?

O que te importa o que da vida faço?
Se amo, se odeio, se tenho cobiça?
Nós não somos mais que um mero pedaço
de carne, ah!, a apodrecer em preguiça.

Temos alma? Pois sim, alma teremos.
Mas até essa no fim desvanece.
Nada resta, e todos então seremos
Somente uma memória que arrefece.

Lembras-me ainda que é o raciocínio
Que nos diferencia dos animais.
Mas na morte, esse tão triste desígnio,
Todos são, homens e bichos, iguais.

Há Sempre Um Rapaz Triste

«Há sempre um rapaz triste
em frente a um barco

(a água é sempre azul
e sempre fresca)

Em que país encontraria
um emprego e esquecimento

em que país encontraria
amor e compreensão

Em que país
sentiriam
a sua vida e a sua morte

Não respondem as gaivotas
porque voam

Há sempre um rapaz triste
com lágrimas nos olhos
em frente a um barco»

António Reis, in Poemas Quotidianos
Pingos do triste vazio que há em mim.

Habituação

O pior de tudo é a habituação.
Enquanto não nos habituamos às coisas,
Porquanto não estamos ainda calejados
de tão bem as conhecermos,
Enquanto tudo ainda é novidade
E tudo está ali pronto a ser descoberto
como Ilhas Virgens prontas a desflorar,
Nesta altura as coisas são boas.
Com a habituação vem o cansaço,
A saturação da rotina.
A falta de novidade irrita-nos.
Começamos, lentamente, a transformar
o que antes admirámos
em pequenos ódios de estimação.
Metamorfoses doentes!
E isto sempre, sempre.
...Monótonas repetições.
Na vida, como em tudo.
Até no Amor - e principalmente neste -
O que o mata é a habituação.
Cessa a novidade, mata-se a curiosidade.
Passamos a amar em escalas de cinzentos.
Um monocromatismo morno,
nem quente, nem frio,
mas a arrefecer,
apodera-se de todos nós
sem excepção
e sem ter pena dos amantes.
"Crime Passional", diz o jornal.
"Discussão Conjugal Acaba em Tragédia!"
(Ah! O Sensacionalismo...)
Coitado! Foi a coisa mais romântica
que ele lhe podia ter feito.
E ficou ali, deitado, a beijar-lhe
a fronte inerte de cadáver
tatuada a vermelho-sangue
com a flor de lótus
do orifício de entrada da bala.
Cruel!
Ao menos neste dia, algo foi diferente.
Houve novidade. Saiu no jornal!
O povo indigna-se
e temos circo por uns tempos.