The Bridge (2006), Eric Steel



[Legendado em Português]

Tempestade!

«O meu beliche é tal qual o bercinho,
Onde dormi horas que não vêm mais.
Dos seus embalos já estou cheiinho:
Minha velha ama são os vendavaes!

Uivam os ventos! Fumo, bebo vinho.
O vapor treme! Abraço a Biblia, aos ais...
Covarde! Que dirá teu Avôzinho,
Que foi moreante? Que dirão teus Paes?

Coragem! Considera o que has soffrido,
O que soffres e o que ainda soffrerás,
E ve, depois, se accaso é permittido

Tal medo á Morte, tanto apego ao mundo:
Ah! fôra bem melhor, vás onde vás,
Antonio, que o paquete fosse ao fundo!»

António Nobre, in

Jazz da Meia Noite

Toca o jazz da meia noite.
Jiggy jiggy, jizzy jazz...
Cigarro a evaporar na ponta dos dedos.
Blues da morte,
Música de má sorte...
Batidas lentas, dinâmica forte.
Súbito saxofone que me rasga em dois,
Que me congela a alma
Da mais profunda calma.
Improvisos solados, ascendentes,
Entre outros tão decadentes...
Montanha russa de melodias
A aquecer-me as noites frias.
Bateria a marcar compasso
Com o escárnio odioso
Com que pelo mundo passo.
E o contrabaixo, lá do seu alto,
Vai fazendo a cama grave
Em que a música se repousa.

Miro por entre a janela
Candelabros escuros de cidadela,
Tristes lampiões solitários
Que dão sua luz em troca de nada,
Iluminando o ninguém ausente
Que pelas ruas passa.
Emanam o amarelo doente das luzes escuras,
Que se estende humilde até poder,
Ziguezagueando por entre as frinchas de noite cerrada
Indo esmorecer em fachadas de casas.
Precário como tudo.
No prédio da frente,
Há esboços de janelas empilhadas.
Delas todas, somente sete iluminadas.
E essas sete, lentamente,
Como em contagem decrescente,
Uma a uma se apagam,
Desistem de permanecer,
Rendem-se ao irrevogável breu sisudo
Que nos há-de recolher.
Devo ser a única vela acesa que resta
Nesta cidade adormecida,
Por entre esta terra morta
Que se retesa e entorta
No sono do tempo.

Tenho mosquitos a beijar-me o vidro,
Companheiros únicos de minhas noites longas
A sugar a fome do rarefeito ar nocturno.
Também eu me rendo.
Também eu me estico na cama.
Cubro a cabeça com a mais espessa manta
A asfixiar no sono.
Adormeço.
Amanhã há mais.
...Ou talvez não.
Mas o jazz fica a tocar
Para meus sonhos infrutíferos.
Esse não esmorece, não.
Jazzy jiggy, jizzy jagg
Jiggy jiggy, jizzy jazz...

É nobre ser tímido, ilustre não saber agir, grande não ter jeito para viver

«É nobre ser tímido, ilustre não saber agir, grande não ter jeito para viver.

Só o Tédio, que é um afastamento, e a Arte, que é um desdém, douram de uma semelhança de contentamento a nossa vida.

Fogos fátuos que a nossa podridão gera são ao menos luz nas nossas trevas.

Só a infelicidade elementar e o tédio puro das infelicidades contínuas, é heráldico como o são descendentes de heróis longínquos.

Sou um poço de gestos que nem em mim se esboçaram todos, de palavras que nem pensei pondo curvas nos meus lábios, de sonhos que me esqueci de sonhar até ao fim.
Sou ruínas de edifícios que nunca foram mais do que essas ruínas, que alguém se fartou, em meio de construí-las, de pensar em quem construiu.
Não nos esqueçamos de odiar os que gozam porque gozam, de desprezar os que são alegres, porque não soubemos ser, nós, alegres como eles... Esse sonho falso, esse ódio fraco não é senão o pedestal tosco e sujo da terra em que se finca e sobre o qual, altiva e única, a estátua do nosso Tédio se ergue, escuro vulto cuja face um sorriso impenetrável, nimba vagamente de segredo.

Benditos os que não confiam a vida a ninguém.»

Bernardo Soares (Fernando Pessoa) in Livro do Desassossego