Harmonias Oníricas

Há certas músicas que têm
o condão de me arrancar
do peito o coração onírico
e de o fazer esvoaçar pelo ar,
dependurado nas semínimas
e colcheias dessas tais melodias,
de o fazer subir como um balão de ar quente
a dançar por entre nuvens etéreas,
feitas do algodão mais fino e macio,
feitas do algodão mais doce.
E nessas nuvens, que se constituem
como as almofadas dos meus sonhos
onde recosto a cabeça,
fantasio risos em verdes prados...
E eu pasmo-me assim,
e fico a ver o tempo fluir lento,
comigo embriagado nas notas da ilusão
que me sustêm a respiração
por tempos longos e indefinidos...
Fico a olhar para as paredes brancas,
telas onde projecto saudosas imagens
das boas memórias de outros tempos,
e tusso lamentos da minha vida presente,
solto "ais!" de estar entre quatro paredes.
Vem-me a ânsia de correr descalço
por entre a relva e o pó da terra,
de me submergir todo nos ledos ribeiros
que só me afogam os joelhos.
E, de facto, na minha mente fértil
faço tudo isso acontecer,
e sou contente.
Percebo-me cheio, completo
de algo que não conheço.
Algo medra dentro de mim e quer sair,
quer rebentar as costuras da pele
e esguichar-se por entre os poros.
Mas contenho-me sempre,
porque só me sei conter.
Nos entretantos de tudo isto,
percebo nos ouvidos um ritardando.
A música cala-se.
Sinto o choque da realidade
que me atropela e faz mossa.
Carrego repeat.



«Sei que choras
muitas vezes
sozinha

e que lavas
o rosto

(Ah, Onde
ando eu)

para a tua dor
não ser minha.»

António Reis - Novos Poemas Quotidianos
Quel temps !
Le vent souffle comme un phoque.
Le yacht danse.
Il a l'air d'un petit fou.
La mer est démontée.
Pourvu qu'elle ne se brise pas sur un rocher.
Personne ne peut la remonter.
"Je ne veux pas rester ici," dit la jolie passagère.
"Ce n'est pas un endroit amusant.
J'aime mieux autre chose.
Allez me chercher une voiture."


A minha música favorita de um dos meus compositores favoritos (e sim, também gosto muito das Gnossiennes e das Gymnopédies!)... Acho que nunca repeti sem parar tantas vezes uma música como esta!

They all look dead... Realistic, but cold and dead.

Descobri por acaso o trabalho deste pintor hiperrealista norueguês, de seu nome Henrik Aarrestad Uldalen, que tem um trabalho fantástico. Pinta em óleo sobre tela imagens que se assemelham a autênticas fotografias, mas que permitem brincar com a imagem e o absurdo como só a pintura permite. E, como não poderia deixar de ser, o seu trabalho transporta-nos para atmosferas etéreas, muito frias, carregadas de melancolia, por vezes a rasar a quietude da morte...

"They all look dead... Realistic, but cold and dead."

Se alguém tiver gostado e tiver curiosidade em ver mais trabalhos do autor, convido a visitar a sua página: http://henrikaau.com/. Vale a pena!
Fatídica, como a vida...



O Eterno Retorno (Sempre Mais Do Mesmo...)

"E se um dia ou uma noite um demónio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: "esta vida, assim como tua a vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes; e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indivisivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e sequência- e do mesmo modo essa aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez - e tu com ela, poeirinha da poeira!" Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demónio que te falasse assim? Ou viveste alguma vez um instante descomunal, em que lhe responderias: "Tu és um deus e nunca ouvi nada mais divino!" Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti, assim como tu és, ele te transformaria e talvez te triturasse; a pergunta, diante de tudo e de cada coisa: "Quero isto ainda uma vez e ainda inúmeras vezes?" pesaria como o mais pesado dos pesos sobre o teu agir! Ou, então, como terias de ficar de bem contigo e mesmo com a vida, para não desejar nada mais do que essa última, eterna confirmação e chancela?"
 
Friedrich Nietzsche, in A Gaia Ciência

Sonhos Náufragos

Dizem que são os sonhos
Quem nos comanda a vida.
Pois então eu estou morto,
Porque em mim o sonho morreu!

Não há motivação ou ambição,
Apenas tristezas e cansaços.
E até a esperança vai acabando
A cada minha nova golfada de ar!

O meu íntimo grita socorro
Mas os ouvidos alheios tapam-se...
Nunca há quem o queira escutar,
Ninguém para se preocupar!

Sou uma nau à deriva, um náufrago
sem ilha ou um porto de abrigo!
Respiro, mas caminho sem direcção,
Não tenho nem utilidade nem alegria...

A racionalidade esmaga-me os desejos
Que tentam, bravios como ervas daninhas,
Furar o alcatrão duro da razão.
E eu, impotente, não acho uma saída...

Este mal, que em mim fez crescer
Raízes entrançadas na minha alma
E fechou as suas garras de rapina
Para não mais me largar, deixar cair...

Esta negrura amarga e apática,
A que talvez possam chamar depressão,
Apoderou-se de mim como cancro,
Metastizou em minha alma e coração!

É-me urgente ressuscitar os sonhos,
Fazê-los emergir dos densos mares,
Dos oceanos escuros, frios e fundos
Onde mergulharam sem saber nadar.

Vontades ou Ócios?

É raro ter força de vontade
No cumprimento de minhas metas,
Nunca tive a pró-actividade
Nem a austeridade dos ascetas.

Mas que bom é, que bem sabe
Fazer o jeito aos caprichos,
Ob'decer cego à vontade,
No néscio jeito de bichos!

Ter que levantar da cama
Sem vontade de fazer nada
E o ocioso leito chama:
"Fica um pouco mais deitada!"

Ai! o prazer que o corpo sofre
Ao deixar estar entre os lençóis...
Deixa estar o dever no cofre
Eu cá estou entre cem mil sóis!

Bom que é subverter a razão,
Esquecê-la completamente,
Dar primazia à sensação,
Ao prazer que a carne sente!

...

Mas deixemo-nos de brincadeiras...
O que é afinal ter força de vontade
Se as minhas vontades têm tanta força
Que raramente as consigo domar com a razão?

Companhia de Mim Próprio

Quero estar sozinho!
Por favor, deixem-me estar sozinho...
Mais sozinho do que o que já sou!

Deixem o isolamento comer-me vivo,
Encolhido com os meus desalentos,
Retirado da mundana hipocrisia!

Não consigo suportar mais a convivência,
Nem posso permitir-me ter mais conivência,
Com aqueles que me querem por conveniência.

Não! Não é isto que realmente anseio!
Sou mentiroso e não sei bem o que quero,
Não consigo expor em frases o que sinto...

Palavras não há que sejam certas,
Todas as sílabas jamais balbuciadas
Pecam na descrição dos reais sentimentos.

Sei que quero ser eu, com a tristeza dos poetas,
Mas sem a dor angustiante do ser-se triste.
Mas será possível esta utópica conciliação?

Ai as dicotomias da minha vida!
O desejar algo que se não quer
E o querer algo que não se deseja!

Gostava de me sentir alegre e satisfeito
Mas sinto nojo do histerismo eufórico,
Da fútil alegria por demais evidente...

Nos dias em que me consigo extrovertir,
Estranho-me a mim mesmo, acho-me falso.
Sinto dessa alegria apenas uma vil repulsa...

Eu quero ser alegre sem mostrar sê-lo,
Desejo a melancolia sem a mágoa do pesar,
Quero numa alegria triste poder durar!

O que realmente quero, percebo-o agora,
É que a melancolia me preencha o vazio
E possa dar sentido à minha existência,

Mas percebo também que é algo irreconciliável,
Que a tristeza não preenche, só nos dilacera.
E isso, infelizmente, só me pode deixar triste!

Deixei De Ser O Que Nunca Fui

Devo ter começado a morrer numa qualquer tarde de melancolia estival,
Da qual me lembro agora por já a haver esquecido nos meandros da memória...
Quando foi que deixei de ser Eu para me tornar nisto que sou?
Nesta coisa amorfa e sem ânimo, nesta viscosidade apática?
Não me consigo lembrar de quando tudo começou a acabar...
Sei que agora vai acabando, lentamente, sumindo-se como areia por entre os dedos!
É tão estranha esta sensação de me olhar ao espelho e não mais me reconhecer,
De haver perdido a identificação com a criança alegre que sempre se reflectiu do outro lado,
Dos sorrisos inocentes e com a vida pela frente que a vidraça prateada, em reflexo, me devolvia!
Lembro-me agora... Acho que já nessa altura tudo havia principiado, apenas eu não dera conta!
Já nessa altura eu tinha deixado de ser aquilo que nunca fui, tinha já começado o desmoronamento,
Já nesses tempos eu tinha deixado de ser o que os outros me quiseram fazer e sempre acharam que eu era,
E que, por isso mesmo, a mim próprio fizeram acreditar que eu era isso, que afinal nunca fui!
Qual a razão, então, de me estranhar agora por não ser mais algo que, afinal de contas, nunca cheguei verdadeiramente a ser?
Não deveria ficar contente por estar mais próximo de vir a conhecer aquilo que sou,
Agora que me apercebi que afinal não sou aquilo que pensava ser, despistando esse engano?
Ai, as contradições da vida, os mil enganos que nos enleiam a propriocepção...
Nunca chegamos bem a saber aquilo que realmente somos, a conhecer a pessoa dentro de nós,
Apenas podemos olhar para trás e ver o que fomos, ou melhor, ver aquilo que não fomos capazes de ser!
Eu viro a cabeça e vejo que fui Muito, sem nunca ter sido capaz de ser Tudo
Isto é, de ser tudo aquilo a que estava destinado e que os outros em mim imaginaram...
Revelei-me um Nada a conduzir-se para a aniquilação total, um fracasso absoluto e ingrato!
Ah, mas ainda assim sou dono de muitas virtudes, não pensem que me degradei a tal ponto...
Sou senhor da minha inteligência e de pertinente observação, apenas nem sempre sei o que com elas fazer...
Talvez a minha elevação de espírito (que, quando novo, fez os outros projectarem em mim grandes feitos)
Talvez esses cumes de Himalaias da alma e da compreensão me tenham propiciado mirar do alto o vazio do mundo,
Essa falta de sentido do existir que é tão óbvia, embora passe tão completamente despercebida à maioria dos transeuntes,
Mas que eu vejo tão claramente, como vejo o meu reflexo ao espelho, e me faz assim desprezá-lo.
Desprezá-lo a ele, ao mundo, e à vida que contém...
"Sou o mais miserável dos homens. Se o que sinto fosse distribuído por igual entre os seres humanos, não haveria face alegre na Terra. Não sei se algum dia vou me sentir melhor, mas continuar assim é impossível. Se nada mudar, prefiro morrer."
 
Abraham Lincoln

Sutura

No silêncio escuro da noite
Ilumina-me esta breve consciência:
Os outros desistiram de mim,
Eu há muito desisti dos outros!
A solidão em que agora me percebo
É o reflexo do cego isolamento
Que sempre procurei dos outros...
Misantropo, eis o que me tornei!

Sinto pena de mim próprio e do meu
(Pelos outros outrora profetizado)
Futuro dourado e caminho alado,
Que é agora ingratamente desperdiçado,
Comprometido por um rasgo de alma
Que me fez ver a crueza nua da vida:
Do tudo que há, só o Nada existe!
O resto não passa dum efémero triste...

Sem suplicar a ninguém, principiamos,
Não é preciso tardar muito, findamos.
O entretanto é um existir sem nexo,
Sem razão real de ser. E o amor?
Talvez possa ser a suma resposta:
Eu cá isso não sei, nem nunca soube...
E é isto o que mais medo me dá, (...e dói!),
Temer nunca o viver para o vir a saber...

Os outros rodeiam-me mas eu sinto-me só,
Eis a velha história já carregada de pó,
Que, tantas vezes e por tantos repetida,
Perdeu já o sentido, de estar tão remexida.
Mas no entanto eu ainda a experimento
Tão real, amarga e simples quanto ela é.
É a pura verdade isto que aqui vos digo
Tanta gente à minha volta e eu só com meu umbigo.

Orgulhoso de carências e carente de orgulho
Fiquei sempre quedinho, nunca ousei fazer barulho.
Juntei-me, ingrato, comigo só à esquina
A tocar a concertina, a dançar um solidó.
Cuidei que no meu isolamento de quase tudo
Juntaria as forças para bradar um grito mudo.
Recusei as companhias com medo de não sei quê
Tornei-me neste anacoreta que aqui assim se vê.

Ah, que ando agora perdido, vagueando sem rumo.
Alinhar minha vida? Nem com fio de prumo!
Procuro, incessante, por um remendo,
Por uma linha que me cosa a alma.
Não sei quantos pontos irei levar,
Apenas sei que o golpe foi profundo,
Muito fundo, grande o suficiente
Para me conseguir fazer odiar o mundo.

Regresso ao Lar

« Ai, há quantos anos que eu parti chorando
deste meu saudoso, carinhoso lar!...
Foi há vinte?... Há trinta?... Nem eu sei já quando!...
Minha velha ama, que me estás fitando,
canta-me cantigas para me eu lembrar!...

Dei a volta ao mundo, dei a volta à vida...
Só achei enganos, decepções, pesar...
Oh, a ingénua alma tão desiludida!...
Minha velha ama, com a voz dorida.
canta-me cantigas de me adormentar!...

Trago de amargura o coração desfeito...
Vê que fundas mágoas no embaciado olhar!
Nunca eu saíra do meu ninho estreito!...
Minha velha ama, que me deste o peito,
canta-me cantigas para me embalar!...

Pôs-me Deus outrora no frouxel do ninho
pedrarias de astros, gemas de luar...
Tudo me roubaram, vê, pelo caminho!...
Minha velha ama, sou um pobrezinho...
Canta-me cantigas de fazer chorar!...

Como antigamente, no regaço amado
(Venho morto, morto!...), deixa-me deitar!
Ai o teu menino como está mudado!
Minha velha ama, como está mudado!
Canta-lhe cantigas de dormir, sonhar!...

Canta-me cantigas manso, muito manso...
tristes, muito tristes, como à noite o mar...
Canta-me cantigas para ver se alcanço
que a minha alma durma, tenha paz, descanso,
quando a morte, em breve, ma vier buscar! »

Guerra Junqueiro, in 'Os Simples'