Coisas Ternas

Gostava de só escrever coisas ternas,
Macias como seda ou fêmeas pernas,
Porém só saem de mim versos negros,
Não sei compor andamentos allegros...

Minhas palavras adensam como pedra,
Causadoras duma agonia que medra;
Quão complicado lê-las sem sufocar...
(Abre as janelas para que corra o ar!)

Difícil mergulhá-las sem aleijar,
Essas sílabas (mar de seiva de âmbar!)
Duras, de firmeza tácita, concretas,
Em que esbracejo agruras pouco discretas.

Tanto eu q'ria ser dos sonhos o poeta,
Cantar cantos à vida, simples, directa...
Queria o sol a branquear minha lírica,
Gracejar versos de toada satírica.

Ambicionei a leveza da palavra
que a caneta, suave, no papel lavra.
Porém fui me eu quedar na desilusão,
Afundei na descrença, na decepção.

Não há-de isto mudar, conquanto eu o queira,
E eu quero-o tanto, é ambição verdadeira.
Mas não sei como hei-de, não sou capaz...
Todo eu sou tão triste, tão escuro... Fugaz!

Na ressaca de compor, estranho o que escrevo,
Contudo, concluo que a mim nada devo.
Mas - querem a verdade? - escrevo o que sinto!
Há um certo exagero, mas sei que não minto.

Revólver

Guardo religiosamente comigo
uma mortífera arma de fogo
ao mesmo tempo delicada e grotesca
de uma benignidade maligna
que ao dar-me segurança
é perigo eminente.
Sempre pronta ao disparo.
Guardo-a tal e qual a extensão
de meus próprios dedos.
Sempre pronta a coçar-me
a comichão que tenho de mim
e dos outros.
Trago com ela e como licença
para uso e porte de arma
dois motivos:
fazer mal aos outros
que eventualmente me farão mal a mim;
fazer mal a mim mesmo
prevenindo fazer-me mal.

E sorrio sempre
seguro de estar certo da minha causa
ao ouvir as notícias que nos badalam
fatídica e alegremente
o mal que os outros nos fazem.
Sabemos de cor os perigos que os outros
nos podem infligir.
Mas não nos dizem nunca
quanto mal podemos incutir
nas nossas pessoas
continuando vivos
e a pensar.

Agitatum

Três copos de vinho depois a estômago vazio
e os sentidos revoltam-se inebriados
deixando-me sem saber o que fazer
mas a querer fazer.
Fustigam-me vontades que desconheço
e que não consigo traduzir para a realidade
prática e lógica da mente
a fim de que as conseguisse concretizar,
Para que por fim
ao satisfazer os desejos
de uma criatividade subconsciente
que trago presa a todo e qualquer
estímulo de ordem sensorial,
conseguisse fremir este desconforto
de querer fazer acontecer
mas de não fazer acontecer nada.
Sinto-me despojado do controlo
das capacidades de criar
que são minhas
e produzo ao acaso
falsas tentativas de palavras desconexas
que não transcrevem nunca
aqueloutras imagens florescidas
nos bastidores de um palco que é meu pensar
mas que nunca entram em cena,
sentido-me nunca ir a tempo de talhar no papel
de forma condigna à primogénita sensação corpórea
essa primal excitação inquietante
que me agita a alma
num tempo e espaço
inexistentes.
Por vezes escrevem-se coisas mesmo feias, não é?

Canção: I - Flebodistimia

Que cor tão sem graça
A das minha veias!
Porque lhe' injectaram
Tão tristes ideias?
Cobrem o meu corpo,
Tecem negras teias
- Tão emaranhadas! -
...De desgosto cheias.

Que cor tão garrida
A do sangue alheio!
E minh'alma ferida
Por golpe tão feio.
Sorte tão sofrida
A que a mim veio!
Sonho a minha vida
Encerrada a meio.

Mas não sei se queria
Ser como os demais...
Há gente mais néscia
Que alguns animais.
Ao me q'rer sumir
Dizem-me: "Onde vais?"
"Não faças asneiras
Pensa nos teus pais!"

Epitáfio

O cansaço de quase tudo.
O desgaste físico
das dores de espírito.
A insatisfação de me trazer desperto.
Sonhos quentes em corpo mole.
Inquietações desassossegadas
de quase-tédio.
A roupa no chão do quarto.
Ao acaso.
Pálpebras com um peso de gigantes.
Persianas semicerradas
como as cortinas do meu olhar.

Funérea horizontalidade.
Fúnebre luminosidade.
Ar pesado... gasto.

Um fechar os olhos
e adormecer.
“Porque a vida só vale na medida em que se expande, na medida em que afirma, na medida em que cria e se revolta. Todo aquele que abdica a sua liberdade nas mãos de um tirano, ou de um dogma, ou de uma maioria, perde com ela tudo o que constitua a sua qualidade e a sua dignidade de pessoa.”

Raul Proença, in Individualismo e Etatismo

A minha alma é diferente de todas as outras almas!

«Tu não podes avaliar o tamanho do meu suplício... Não podes... A tua alma não compreende a minha... nem a tua, nem a de ninguém. Tenho horror à vida... meu amigo, tenho horror à vida... Tenho horror à morte; menos horror talvez... mais horror... ignoro... Não posso viver, não posso viver... Não quero morrer... não quero morrer... É horrível... horrível... Que ando a fazer neste mundo? O mesmo que as outras pessoas, bem sei... Ah! mas é justamente isso que me aterra, que me horroriza... Vivo como todos, à espera da velhice, percebes? À espera da morte, compreendes?
(…)
Hoje sou novo... Marcela é nova... Somos belos... Os nossos corpos, esbeltos, flexíveis... Os nossos lábios, ardentes; os nossos órgãos, vigorosos... Amamos e sabemos e podemos amar... A carne dum deseja a carne do outro; palpitando ao lado dela, esvai-se delirante, arfa morta de prazer... Dos nossos corpos brota a vida... Amamo-nos, somos novos... somos felizes... Mas amanhã?... Amanhã... Terrível! Seremos velhos... A carne amolecida, já não desejará a carne; ou, se a desejar, em vão se esforçará por fremir aos deliciosos contactos. O foco da vida, apagado, não inflamará os sentidos... A alma, que nunca envelhece, que ama sempre, já não saberá nem poderá amar!... Diante dum corpo encarquilhado e frio, eu recordarei esse mesmo corpo quando ele era fogo... mármore... mármore que ardia... Recordarei prazeres estonteantes em horríveis despojos... Morrerei de sede, junto da fonte onde outrora tanta vez bebi a vida a haustos largos... Recordar é morrer... E eu não tenho coragem para morrer desta maneira... Não tenho! Não hei de morrer assim!... Lembrar-me que cada dia me aproxima dessa hora fatal e não poder... não poder obstar a que os dias passem!... Ah! meu amigo, o meu cérebro está doente... Nada o curará... Se eu pudesse pensar, encarar as coisas como todos as encaram... Mas não posso... não posso... A minha alma é diferente de todas as outras almas!..»

Mário de Sá-Carneiro, in Loucura

Ensina-me a Amar

Ensina-me a amar!...

Ensina-me os afectos,
que eu esqueci-os quase todos
durante a minha solidão.

Tornei-me
seco que nem deserto,
duro como pedra,
abrasivo qual lixa!

Impróprio ao toque.

Beijos são agora toques indecentes
e mentirosos,
Que quase me prometem a indecência
mas sempre se recusam à última.

Abraços não são mais que estrangulamentos
ao meu comodismo,
Apertos íntimos que me esmagam
a postura.


Ensina-me a amar,
que ainda é
tempo.

Ódios Em Mim

Dorme.
Dorme para não pensar.


Descobri
que as emoções
têm prazo de validade
e que deixei expirar em mim
quase todas
antes do tempo,
antes que as pudesse
saborear.

Restou o bolor
azedo
da raiva odiosa
a quase tudo,

O ranço nascido dos contentamentos
por aproveitar
que assim se foram
decompondo,

fermentando cegamente
ódios em mim.

Ecdise

Não sei se gosto do que escrevo,
Não sei se escrevo ao meu gosto,
Nem percebo bem se m'atrevo
A desafiar o imposto.

Enjoo de mim próprio por
Comigo estar demasiado.
Devia dar-me folga-mor,
Viver de mim próprio exilado.

Mas não consigo! Não me dá
P'ra me esguichar pelo ouvido,
Ou p'los demais buracos que há
No corpo que trago vestido.

Experimentei provocar o vómito,
Cuspir-me de dentro de mim...
Não me percebo, sou incógnito
Para a minh'alma em frenesim!

Só a Morte, quiçá, liberta
Do peso que temos de nós!
Mas não deixa uma porta aberta
P'ra voltar, se ficarmos sós.

Aurora

Cidade! que cintilas no negro
do dia apagado,
E despedes, com a calma imensa,
mais um ciclo passado:

Que foi de nós, que aqui ficámos?
...A ver cair a luz transformada em noite;
...A ver sorrir a lua agitando os mares.

Que insónia é esta, que nos traz acordados?
...Quando tudo dorme e nada se agita;
...Quando tudo se esquece e ninguém grita.

Sussurramos à brisa os nossos pecados.

Que foi de nós?
Madrugámos.

Braços Abertos, De Encontro Ao Mundo

Por vezes vem-me a ânsia
de correr de braços abertos
de encontro ao mundo...

Deixar o sol a dourar e a durar
na crista das ondas
que vagam nas cearas de oiro
impelidas pelo vento ameno
e calmo da estação estival
que nos aquece a alma.

Águas fluviais serpenteiam
e insinuam-se por entre montes
de viçosa verdura ribeirinha
que delineia os contornos
de um rio que parece mais cristalino
que a própria sede.

E neste quadro harmonioso
há cegonhas a planar um doce sossego
nos ares celestes que o sol queima.


Porque é que ao fim da tarde
tudo parece mais real,
ao mesmo tempo mais mágico?
Porque é que com o cair do sol
emerge a beleza neutra que há nas coisas
e o coração se nos embebe da nostalgia?
Ah, como eu gosto do raiar rubro
do pôr do sol, a inflamar os céus
e o nosso ser!
E são nestes instantes pueris,
breves momentos de tréguas
que a vida nos concede,
que eu compreendo o sentido
de estar vivo e de não pensar.

...Estar tudo isto nos olhos de quem o vê
e no espírito de quem o sente!
Não ser preciso impregnar-me da razão
para a compreensão desta verdade!
Pois não pode alma outra
senão aquela em paz,
comungar de tal modo a beleza
daquilo que a rodeia;
Pois que a beleza do mundo
está nos olhos de quem o olha
com a tranquilidade necessária
aquando dos esporádicos acasos
em que temos a deleitosa coragem
de nos despojarmos de nós.

Mas são ténues estes momentos
e não justificam tudo.

Náusea

Já houve alturas
em que quis
morrer.

Muitas.

Noutras tantas
(Quase sempre na
ressaca desse
infame desejo)

A ideia da
morte minha
enjoou-me
tanto

Causou-me
tal náusea

Que cheguei
a estranhar a própria
vida.


Ainda estranho.

A Confissão de Lúcio

«Esses dez anos esvoaram-se-me como dez meses. É que, em realidade, as horas não podem mais ter acção sobre aqueles que viveram um instante que focou toda a sua vida. Atingido o sofrimento máximo, nada já nos faz sofrer. Vibradas as sensações máximas, nada já nos fará oscilar. Simplesmente, este momento culminante raras são as criaturas que o vivem. As que o viveram ou são, como eu, os mortos-vivos, ou — apenas — os desencantados que, muita vez, acabam no suicídio.
Contudo, ignoro se é felicidade maior não se existir tamanho instante. Os que o não vivem, têm a paz — pode ser. Entretanto, não sei. E a verdade é que todos esperam esse momento luminoso. Logo, todos são infelizes. Eis pelo que, apesar de tudo, eu me orgulho de o ter vivido.»

Mário de Sá-Carneiro, in A Confissão de Lúcio

Retorno À Origem

Aprontei a dar fuga da cidade
Com toda a possível fugacidade.
O bucólico estava prometido,
Já se sabe: o prometido é devido!

O frenético reboliço urbano
Causa me um alheamento tirano.
Faz-me ficar tal peixe fora d'água,
Fico vazio, perdura só mágoa!

Cinzenta cidade, negro alcatrão
Deixem-me fugir, larguem-me da mão!
Como é possível ar tão poluído?
Ensurdeci do tamanho ruído.

Tantas as pessoas, tal multidão!
Enjoo todas, sem haver excepção...
Todos tão iguais, os clones urbanos,
Seres artificiais, não mais humanos.

Não se vêem mais expressões faciais...
Rostos inúmeros, mas todos iguais!
E trazem todos a alma talhada
Das mesmas ideias, do mesmo nada!

A impessoalidade que a urbe tem
Faz-me chorar p'lo regaço de mãe...
Anseio por um alguém que m'embale
Neste mundo onde o tudo nada vale!

Levo as mãos à cara, arranho-me fundo.
Faz-me enlouquecer, este sítio imundo!
Contamina-me a alma, o corpo e a mente,
Há que fugir deste lugar doente.

Que Importa?

O que te importa o que da vida faço?
Se amo, se odeio, se tenho cobiça?
Nós não somos mais que um mero pedaço
de carne, ah!, a apodrecer em preguiça.

Temos alma? Pois sim, alma teremos.
Mas até essa no fim desvanece.
Nada resta, e todos então seremos
Somente uma memória que arrefece.

Lembras-me ainda que é o raciocínio
Que nos diferencia dos animais.
Mas na morte, esse tão triste desígnio,
Todos são, homens e bichos, iguais.

Há Sempre Um Rapaz Triste

«Há sempre um rapaz triste
em frente a um barco

(a água é sempre azul
e sempre fresca)

Em que país encontraria
um emprego e esquecimento

em que país encontraria
amor e compreensão

Em que país
sentiriam
a sua vida e a sua morte

Não respondem as gaivotas
porque voam

Há sempre um rapaz triste
com lágrimas nos olhos
em frente a um barco»

António Reis, in Poemas Quotidianos
Pingos do triste vazio que há em mim.

Habituação

O pior de tudo é a habituação.
Enquanto não nos habituamos às coisas,
Porquanto não estamos ainda calejados
de tão bem as conhecermos,
Enquanto tudo ainda é novidade
E tudo está ali pronto a ser descoberto
como Ilhas Virgens prontas a desflorar,
Nesta altura as coisas são boas.
Com a habituação vem o cansaço,
A saturação da rotina.
A falta de novidade irrita-nos.
Começamos, lentamente, a transformar
o que antes admirámos
em pequenos ódios de estimação.
Metamorfoses doentes!
E isto sempre, sempre.
...Monótonas repetições.
Na vida, como em tudo.
Até no Amor - e principalmente neste -
O que o mata é a habituação.
Cessa a novidade, mata-se a curiosidade.
Passamos a amar em escalas de cinzentos.
Um monocromatismo morno,
nem quente, nem frio,
mas a arrefecer,
apodera-se de todos nós
sem excepção
e sem ter pena dos amantes.
"Crime Passional", diz o jornal.
"Discussão Conjugal Acaba em Tragédia!"
(Ah! O Sensacionalismo...)
Coitado! Foi a coisa mais romântica
que ele lhe podia ter feito.
E ficou ali, deitado, a beijar-lhe
a fronte inerte de cadáver
tatuada a vermelho-sangue
com a flor de lótus
do orifício de entrada da bala.
Cruel!
Ao menos neste dia, algo foi diferente.
Houve novidade. Saiu no jornal!
O povo indigna-se
e temos circo por uns tempos.

Amizade

Sabemos que temos um amigo quando estamos com alguém e, embora não tenhamos assunto para falar, o silêncio que se gera não incomoda, mas é na verdade intimo, fraterno, confortavelmente relaxante e apaziguador.

Olhar de Mongol

(Ou a queca que nunca dei)

Passo por ti. Passas por mim.
Tropeçamos um no outro, como perfeitos desconhecidos.
Nossas pupilas cruzam-se e fitam-se demoradamente
na perfeição cúmplice de um olhar de mongol.
Trazes uma exagerada volúpia nos olhos
à qual não consigo resistir...
Meus olhos demoram em ti, e os teus em mim.
Sabemos instantâneamente que vai acontecer.
Não sabemos o quê, mas sabemos que sim.
Sinto uma maré de ânsia subir-me pernas acima
e instalar-se, subitamente, na minha púbis,
imbuindo-me os testículos de um desejo
que me contamina o corpo e a alma
e faz erguer monumentos fálicos à tua imagem,
faz levantar mastros, abrir velas
que levam a quilha da paixão a rasgar o mar que nos separa...
E eu aproveito a bulina e dirijo-me a ti
impelido pelo vento que me leva até ti
a todo o vapor, À tout vitesse!
És linda!
Afago-te a face. Brindas-me com um sorriso.
Somos dois desconhecidos, que se reconhecem dos sonhos
tidos na ressaca delirante doutros amores desfeitos.
Tudo isto é tão estranho, contudo faz tanto sentido.
Minha boca abre-se para te falar...
Mas tu não deixas, tu não queres
e tapas-me os lábios a arder de avidez,
primeiro, com o veludo da polpa dos dedos,
depois, com a rubridez dos teus lábios
na sofreguidão de um beijo demorado.
Nossos dedos mudos tocam-se e enleiam-se,
enlaçam-se, virevolteiam e dão nós cegos
e fico atrelado a ti, numa união par que se torna ímpar.
Agarras-me pela mão e levas-me ao teu abrigo,
ao teu ninho de andorinha primaveril,
que tem o ar carregado do cheiro a rosmaninho
e de flores a desabrochar, que só o abril da primavera nos oferece.
Entramos mudos. Olhamo-nos calados.
...As palavras só poderão atrapalhar!
Estendes-me um copo de uísque, convidando-me a acompanhar-te.
Três pedras de gelo e quatro dedos dourados de líquido cor-de-urina.
Brindamos num tinir cristalino de copos grossos de excitação
e atestamos nossos corpos, num trago, de um combustível
que nos inquina docemente o hálito e nos liberta
das amarras quotidianas e da timidez imprópria.
Ensinas-me o caminho do teu quarto e da tua cama,
obrigando minha líbido a um arranque de motores furiosos,
atingindo rapidamente um excesso de velocidade tal
que culmina no desastre de um choque frontal de nossos corpos
e de nossas bocas, e dos teus seios no meu peito,
e da tua púbis na minha...
Embrulhamo-nos nos destroços um do outro,
amolgamos a chapa das nossas vestes
e somos sapadores que resgatam o corpo um do outro
do enleamento de prisão das roupas.
Rasgo-te o vestido de uma investida só
e tu descascas minhas calças tal casca de banana,
pondo a nu a polpa das minhas pernas
e a semente que é meu sexo.
Finalmente despidos! Na pureza de como se vem ao mundo...
Brinco delicadamente com a ponta da língua no teu umbigo,
obrigando tuas ilhargas aos espasmos coreicos
de uma dança do ventre espontânea e sem ensaios,
e olho teus seios, opalinos e alvos, sorrindo para mim lá do alto,
redondos de uma castidade leitosa,
mirando-me com as pupilas melanodérmicas dos mamilos,
mamilos teus que apontam, acusadores, um telotismo exagerado.
Afago esses teus pêssegos de pele sedosa
e sou novamente lactente no conforto do colo saudoso de mãe,
saboreando a intimidade maternal que teus peitos me oferecem.
Entredevoramo-nos entre beijos e carícias
sem dó nem pudor, num ancestral instinto animal,
apenas com a malícia precisa, com conta, peso e medida.
Separo languidamente as tuas pernas,
tal Moisés a abrir em dois o Mar Vermelho
(e vermelho é o mar que de mês a mês corre entre tuas coxas)
deixando passar o povo oprimido dos meus dedos
que descobrem a vulvar terra humidamente prometida,
que guardas como tua caixa de Pandora,
desconhecida do mundo carnal até então.
- E eu sinto-me português,
a desbravar os mares nunca d'antes navegados -
Beijo-te o sexo, num toque de lábios avesso e perpendicular
que te põe a balbuciar desejos em suspiros,
orgasmos gasosos a evaporarem-se da tua boca...
Escalo o teu monte de Vénus (esse Evereste de tamanho erotismo!)
e arrepanho o algodão emaranhado de teus pentelhos
brincando e arrepelando-os suavemente, enquanto te afago o corpo
que exibe uma pele de galinha tremenda
e me mostra teus pêlos eriçados de tamanha sensibilidade.
...E meu corpo igualzinho ao teu,
pejado de uma electricidade excitante que é tudo menos estática.
Descubro-me entretanto chave que abre a fechadura
da tua caixa de Pandora. Penetro-te.
Movimento-me repetidamente, perante tua passividade morna,
num balanço pendular de baloiço infantil,
obrigando-te, incontáveis vai-vens arrítmicos depois,
ao contorcionismo de um orgasmo.
Selo o consumar do acto com um fraterno beijo em tua testa.
Nossos corpos caem, derreados, no colchão
vencidos pelo cansaço que a paixão provoca,
e deixamo-nos evaporar do mundo
lentamente, muito lento,
sem desejar
nada mais.

Redenção

I

«Vozes do mar, das árvores, do vento!
Quando às vezes, n'um sonho doloroso,
Me embala o vosso canto poderoso,
Eu julgo igual ao meu vosso tormento...

Verbo crepuscular e íntimo alento
Das cousas mudas; psalmo misterioso;
Não serás tu, queixume vaporoso,
O suspiro do mundo e o seu lamento?

Um espírito habita a imensidade:
Uma ânsia cruel de liberdade
Agita e abala as formas fugitivas.

E eu compreendo a vossa língua estranha,
Vozes do mar, da selva, da montanha...
Almas irmãs da minha, almas cativas!»

II

«Não choreis, ventos, árvores e mares,
Coro antigo de vozes rumorosas,
Das vozes primitivas, dolorosas
Como um pranto de larvas tumulares...

Da sombra das visões crepusculares
Rompendo, um dia, surgireis radiosas
D'esse sonho e essas ânsias afrontosas,
Que exprimem vossas queixas singulares...

Almas no limbo ainda da existência,
Acordareis um dia na Consciência,
E pairando, já puro pensamento,

Vereis as Formas, filhas da Ilusão,
Cair desfeitas, como um sonho vão...
E acabará por fim vosso tormento.
»

Antero de Quental, in "Sonetos"

Melancolia

«Facilmente imagino que há um propósito, um consentimento e um comprazimento em nos impregnarmos de melancolia, sem falar do desejo de suscitar compaixão, que se pode ainda acrescentar. Há uma sombra de gulodice e de elegância que nos sorri e nos lisonjeia no próprio seio da melancolia.»

Michel de Montaigne, in Pequeno Vade-Mécum
And if you're feeling you've got everything you came for
If you got everything and you don't want no more



 

Peso Morto

Há dias em que
mais valia
cair
morto.

Para
não mais
levantar.

Mas não tenho
onde possa
tombar
morto,

Onde possa
enfim
deitar.
«Sempre que penso nessa história, recordo-me até que ponto a existência pode ser vazia e fútil quando se baseia numa falsa crença de continuidade e permanência. Sempre que vivemos desse modo tornamos-nos em cadáveres vivos e inconscientes.
É um facto que a maioria de nós vive assim, de acordo com um plano predeterminado. Passamos a juventude a estudar, a seguir arranjamos um emprego, conhecemos alguém, casamos e temos filhos. Compramos uma casa, tentamos ter êxito na nossa profissão e apontamos para sonhos, tal como uma casa no campo ou um segundo carro. Vamos passear com os amigos, fazemos planos para a reforma e os maiores dilemas que alguns de nós terão de enfrentar são para onde ir nas próximas férias ou quem convidar para o Natal. As nossas vidas são monótonas, mesquinhas, repetitivas e desperdiçadas na perseguição do trivial, porque, aparentemente, não conhecemos nada melhor.»

in "Bardo Thodol: O livro Tibetano da Vida e da Morte" 

Um dia não muito longe não muito perto

«Às vezes sabes sinto-me farto
por tudo isto ser sempre assim
Um dia não muito longe não muito perto
um dia muito normal um dia quotidiano
um dia não é que eu pareça lá muito hirto
entrarás no quarto e chamarás por mim
e digo-te já que tenho pena de não responder
de não sair do meu ar vagamente absorto
farei um esforço parece mas nada a fazer
hás-de dizer que pareço morto
que disparate dizias tu que houve um surto
não sabes de quê não muito perto
e eu sem nada pra te dizer
um pouco farto não muito hirto e vagamente absorto
não muito perto desse tal surto
queres tu ver que hei-de estar morto? »

Ruy Belo, in Homem de Palavra[s]

Porque o melhor, enfim...

«Porque o melhor, enfim,
É não ouvir nem ver...
Passarem sobre mim
E nada me doer!

Sorrindo interiormente,
Com as pálpebras cerradas,
Às águas da torrente
Já tão longe passadas.

Rixas, tumultos, lutas,
Não me fazerem dano...
Alheio às vãs labutas,
Às estações do ano.

Passar o estio, o outono,
A poda, a cava, e a redra,
E eu dormindo um sono
Debaixo duma pedra.

Melhor até se o acaso
O leito me reserva
No prado extenso e raso
Apenas sob a erva

Que Abril copioso ensope...
E, esvelto, a intervalos
Fustigue-me o galope
De bandos de cavalos.

Ou no serrano mato,
A brigas tão propício,
Onde o viver ingrato
Dispõe ao sacrifício

Das vidas, mortes duras
Ruam pelas quebradas,
Com choques de armaduras
E tinidos de espadas...

Ou sob o piso, até,
Infame e vil da rua,
Onde a torva ralé
Irrompe, tumultua,

Se estorce, vocifera,
Selvagem nos conflitos,
Com ímpetos de fera
Nos olhos, saltos, gritos...

Roubos, assassinatos!
Horas jamais tranquilas,
Em brutos pugilatos
Fracturam-se as maxilas...

E eu sob a terra firme,
Compacta, recalcada,
Muito quietinho. A rir-me
De não me doer nada.»


Camilo Pessanha, in Clepsidra

Os mares, minha bela, não se movem

«Os mares, minha bela, não se movem;
O brando norte assopra, nem diviso
Uma nuvem sequer na esfera toda;
O destro nauta aqui não é preciso;
Eu só conduzo a nau, eu só modero
     Do seu governo a roda.

Mas ah! que o sul carrega, o mar se empola,
Rasga-se a vela, o mastaréu se parte!
Qualquer varão prudente aqui já teme;
Não tenho a necessária força e arte.
Corra o sábio piloto, corra e venha
     Reger o duro leme.

Como sucede à nau no mar, sucede
Aos homens na ventura e na desgraça;
Basta ao feliz não ter total demência;
Mas quem de venturoso a triste passa,
Deve entregar o leme do discurso
     Nas mãos da sã prudência.

Todo o céu se cobriu, os raios chovem;
E esta alma, em tanta pena consternada,
Nem sabe aonde possa achar conforto.
Ah! não, não tardes, vem, Marília amada,
Toma o leme da nau, mareia o pano,
     Vai-a salvar no porto!

Mas ouço já de Amor as sábias vozes:
Ele me diz que sofra, se não, morro;
E perco então, se morro, uns doces laços.
Não quero já, Marília, mais socorro;
Oh! ditoso sofrer, que lucrar pode
     A glória dos teus braços!»

Tomáz António Gonzaga, in Marília de Dirceu (1792)
"And we walk into the fog, we don't look back because we know there is no one looking back at us."

A 20 de Novembro

"A 20 de Novembro de 2006, na cidade alemã de Emsdetten, um jovem rapaz de 18 anos entrou armado no seu antigo liceu para matar antigos colegas e professores. Depois de ter ferido várias pessoas, Sebastian Bosse vira a arma contra ele e suicida-se. Alguns dias antes, tinha deixado na Internet um testemunho desesperado onde anunciava o seu sinistre intento como última esperança para ser ouvido.

A partir do diário íntimo deixado pelo adolescente deste suicídio programado, Lars Norén escreve um monólogo, um poema intenso, violento, incómodo, provocador e trágico ao mesmo tempo. Um texto que interpela directamente os espectadores e os torna testemunhas e companheiros desta horrível aventura.

Que mundo é este, que tende a excluir os que não são “performantes”, os menos dotados, os mais vulneráveis e que leva um jovem a cometer um acto de tão terríveis consequências. O mundo tornou-se tão frio e duro como o cano de uma arma?"

Quando eu morrer, a terra aberta me beba de um trago e esqueça

«Quando eu morrer, a terra aberta
Me beba de um trago
E esqueça.
Aos deuses minha oferta
É levar o que trago:
Eu, dos pés à cabeça.

Assim, com ervas altas
Acabam os que começam.
Que Deus nos perdoe as faltas!
Dizem: "A terra que nos come":
Eu digo: "A que nos bebe" - e basta.
Somos só água que se some:
Choveu - e fomos
Na vida gasta.»

Vitorino Nemésio, in Eu, Comovido a Oeste
The Bridge (2006), Eric Steel



[Legendado em Português]

Tempestade!

«O meu beliche é tal qual o bercinho,
Onde dormi horas que não vêm mais.
Dos seus embalos já estou cheiinho:
Minha velha ama são os vendavaes!

Uivam os ventos! Fumo, bebo vinho.
O vapor treme! Abraço a Biblia, aos ais...
Covarde! Que dirá teu Avôzinho,
Que foi moreante? Que dirão teus Paes?

Coragem! Considera o que has soffrido,
O que soffres e o que ainda soffrerás,
E ve, depois, se accaso é permittido

Tal medo á Morte, tanto apego ao mundo:
Ah! fôra bem melhor, vás onde vás,
Antonio, que o paquete fosse ao fundo!»

António Nobre, in

Jazz da Meia Noite

Toca o jazz da meia noite.
Jiggy jiggy, jizzy jazz...
Cigarro a evaporar na ponta dos dedos.
Blues da morte,
Música de má sorte...
Batidas lentas, dinâmica forte.
Súbito saxofone que me rasga em dois,
Que me congela a alma
Da mais profunda calma.
Improvisos solados, ascendentes,
Entre outros tão decadentes...
Montanha russa de melodias
A aquecer-me as noites frias.
Bateria a marcar compasso
Com o escárnio odioso
Com que pelo mundo passo.
E o contrabaixo, lá do seu alto,
Vai fazendo a cama grave
Em que a música se repousa.

Miro por entre a janela
Candelabros escuros de cidadela,
Tristes lampiões solitários
Que dão sua luz em troca de nada,
Iluminando o ninguém ausente
Que pelas ruas passa.
Emanam o amarelo doente das luzes escuras,
Que se estende humilde até poder,
Ziguezagueando por entre as frinchas de noite cerrada
Indo esmorecer em fachadas de casas.
Precário como tudo.
No prédio da frente,
Há esboços de janelas empilhadas.
Delas todas, somente sete iluminadas.
E essas sete, lentamente,
Como em contagem decrescente,
Uma a uma se apagam,
Desistem de permanecer,
Rendem-se ao irrevogável breu sisudo
Que nos há-de recolher.
Devo ser a única vela acesa que resta
Nesta cidade adormecida,
Por entre esta terra morta
Que se retesa e entorta
No sono do tempo.

Tenho mosquitos a beijar-me o vidro,
Companheiros únicos de minhas noites longas
A sugar a fome do rarefeito ar nocturno.
Também eu me rendo.
Também eu me estico na cama.
Cubro a cabeça com a mais espessa manta
A asfixiar no sono.
Adormeço.
Amanhã há mais.
...Ou talvez não.
Mas o jazz fica a tocar
Para meus sonhos infrutíferos.
Esse não esmorece, não.
Jazzy jiggy, jizzy jagg
Jiggy jiggy, jizzy jazz...

É nobre ser tímido, ilustre não saber agir, grande não ter jeito para viver

«É nobre ser tímido, ilustre não saber agir, grande não ter jeito para viver.

Só o Tédio, que é um afastamento, e a Arte, que é um desdém, douram de uma semelhança de contentamento a nossa vida.

Fogos fátuos que a nossa podridão gera são ao menos luz nas nossas trevas.

Só a infelicidade elementar e o tédio puro das infelicidades contínuas, é heráldico como o são descendentes de heróis longínquos.

Sou um poço de gestos que nem em mim se esboçaram todos, de palavras que nem pensei pondo curvas nos meus lábios, de sonhos que me esqueci de sonhar até ao fim.
Sou ruínas de edifícios que nunca foram mais do que essas ruínas, que alguém se fartou, em meio de construí-las, de pensar em quem construiu.
Não nos esqueçamos de odiar os que gozam porque gozam, de desprezar os que são alegres, porque não soubemos ser, nós, alegres como eles... Esse sonho falso, esse ódio fraco não é senão o pedestal tosco e sujo da terra em que se finca e sobre o qual, altiva e única, a estátua do nosso Tédio se ergue, escuro vulto cuja face um sorriso impenetrável, nimba vagamente de segredo.

Benditos os que não confiam a vida a ninguém.»

Bernardo Soares (Fernando Pessoa) in Livro do Desassossego

Se Te Queres Matar

«Se te queres matar, por que não te queres matar?
Ah, aproveita! que eu, que tanto amo a morte e a vida,
Se ousasse matar-me, também me mataria...
Ah, se ousares, ousa!
De que te serve o quadro sucessivo das imagens externas
A que chamamos o mundo?
A cinematografia das horas representadas
Por actores de convenções e poses determinadas,
O circo policromo do nosso dinamismo sem fim?
De que te serve o teu mundo interior que desconheces?
Talvez, matando-te, o conheças finalmente...
Talvez, acabando, comeces...
E, de qualquer forma, se te cansa seres,
Ah, cansa-te nobremente,
E não cantes, como eu, a vida por bebedeira,
Não saúdes como eu a morte em literatura!

Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente!
Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém...
Sem ti correrá tudo sem ti.
Talvez seja pior para outros existires que matares-te...
Talvez peses mais durando, que deixando de durar...

A mágoa dos outros?... Tens remorso adiantado
De que te chorem?
Descansa: pouco te chorarão...
O impulso vital apaga as lágrimas pouco a pouco,
Quando não são de coisas nossas,
Quando são do que acontece aos outros, sobretudo a morte,
Porque é coisa depois da qual nada acontece aos outros...

Primeiro é a angústia, a surpresa da vinda
Do mistério e da falta da tua vida falada...
Depois o horror do caixão visível e material,
E os homens de preto que exercem a profissão de estar ali.
Depois a família a velar, inconsolável e contando anedotas,
Lamentando a pena de teres morrido,
E tu mera causa ocasional daquela carpidação,
Tu verdadeiramente morto, muito mais morto que calculas...
Muito mais morto aqui que calculas,
Mesmo que estejas muito mais vivo além...
Depois a trágica retirada para o jazigo ou a cova,
E depois o princípio da morte da tua memória.
Há primeiro em todos um alívio
Da tragédia um pouco maçadora de teres morrido...
Depois a conversa aligeira-se quotidianamente,
E a vida de todos os dias retoma o seu dia...

Depois, lentamente esqueceste.
Só és lembrado em duas datas, aniversariamente:
Quando faz anos que nasceste, quando faz anos que morreste.
Mais nada, mais nada, absolutamente mais nada.
Duas vezes no ano pensam em ti.
Duas vezes no ano suspiram por ti os que te amaram,
E uma ou outra vez suspiram se por acaso se fala em ti.

Encara-te a frio, e encara a frio o que somos...
Se queres matar-te, mata-te...
Não tenhas escrúpulos morais, receios de inteligência! ...
Que escrúpulos ou receios tem a mecânica da vida?

Que escrúpulos químicos tem o impulso que gera
As seivas, e a circulação do sangue, e o amor?

Que memória dos outros tem o ritmo alegre da vida?
Ah, pobre vaidade de carne e osso chamada homem.
Não vês que não tens importância absolutamente nenhuma?

És importante para ti, porque é a ti que te sentes.
És tudo para ti, porque para ti és o universo,
E o próprio universo e os outros
Satélites da tua subjectividade objectiva.
És importante para ti porque só tu és importante para ti.
E se és assim, ó mito, não serão os outros assim?

Tens, como Hamlet, o pavor do desconhecido?
Mas o que é conhecido? O que é que tu conheces,
Para que chames desconhecido a qualquer coisa em especial?

Tens, como Falstaff, o amor gorduroso da vida?
Se assim a amas materialmente, ama-a ainda mais materialmente,
Torna-te parte carnal da terra e das coisas!
Dispersa-te, sistema físico-químico
De células nocturnamente conscientes
Pela nocturna consciência da inconsciência dos corpos,
Pelo grande cobertor não-cobrindo-nada das aparências,
Pela relva e a erva da proliferação dos seres,
Pela névoa atómica das coisas,
Pelas paredes turbilhonantes
Do vácuo dinâmico do mundo...»

Álvaro de Campos, in "Poemas"
Recordações da Casa Amarela (1989), de João César Monteiro


"Aqui estamos mais uma vez sozinhos. Tudo isto é tão lento, tão pesado, tão triste... Dentro de pouco tempo estarei velho. Tudo então se acabará. Tanta gente que passou aqui por este quarto. Disseram coisas. Não me disseram grande coisa. Foram-se embora. Envelheceram, tornaram-se lentos e miseráveis, cada qual no seu recanto da terra."